Descrição de chapéu Primeira vez

Romance de estreia de Clarice Lispector é 'nobre realização', escreveu Candido na Folha em 1944

Crítico literário comentou 'Perto do Coração Selvagem' em texto na Folha da Manhã

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São Paulo

"O coração selvagem pode ser um céu e pode ser um inferno. Como nunca o atingimos, é sempre um inferno especial", escreveu o crítico literário Antonio Candido (1918-2017) a respeito do romance de estreia de Clarice Lispector, "Perto do Coração Selvagem" (1943).

Nesse primeiro livro publicado por Clarice, o crítico identificou um acontecimento raro na literatura brasileira. Surgia, dizia ele no texto de julho de 1944, um novo processo poético que diluía o tempo cronológico para abrir novas dimensões do humano.

Por meio da reinvenção das palavras e da intensidade de sua escrita, Candido aponta, o livro de Clarice nos permite "respirar numa atmosfera que se aproxima da grandeza".

Essa foi a primeira aparição da autora na Folha, tendo seu livro resenhado por aquele que é hoje considerado o mais importante crítico literário do Brasil.

A coluna de Candido, a seção Notas de Crítica Literária, foi publicada na Folha da Manhã ao longo da década de 1940. Nela, diversos autores (alguns hoje canônicos como João Cabral de Melo Neto e a própria Clarice) tiveram suas obras analisadas.

"Mas o lustre! Havia o lustre. A grande aranha escandescia. Olhava-o imóvel, inquieta, parecia pressentir uma vida terrível", lembra a protagonista Virgínia, cuja voz interna conduz o segundo romance publicado por Clarice Lispector.

"O Lustre", lançado em 1946, conduz o leitor através do fluxo de consciência da narradora, técnica essencial da escrita de Clarice, que propõe um mergulho no interior das personagens, em que cada detalhe se converte em pista de suas condições humanas.

As memórias de Virgínia, em especial as de sua infância, se misturam à sua solidão na vida adulta, narrando de forma tanto fluida quanto difusa uma jornada de formação incompleta —jornada na qual a descoberta da vida é, nada simplesmente, a descoberta da morte.

"Perto do Coração Selvagem" e "O Lustre", assim, anunciam temas mais tarde típicos da obra de Clarice, bem como sua técnica poética.

pedaço de uma página de jornal
Texto publicado em 24 de fevereiro de 1946 na Folha sobre 'O Lustre', o segundo romance de Clarice Lispector - Reprodução

Em fevereiro daquele ano, a colunista Helena Silveira, da Folha, dedicou sua coluna semanal, Consultório Literário, ao segundo romance de Clarice.

"Estranha e fascinante" é como a jornalista descreve a escritora. Não faltam elogios a "O Lustre", mas há também alertas para a leitora (a coluna de Silveira era voltada especificamente ao público feminino).

Silveira aponta que é preciso esforço para ler Clarice, autora de uma obra que não pode atingir, "infelizmente, o grande público leitor". Desse esforço de atenção, contudo, um mundo de "palavras indizíveis" é revelado e é só a partir desse estilo próprio que tal efeito de identificação entre leitora e personagem poderia ser atingido.

Leia abaixo a coluna de Candido e a de Silveira, republicadas agora integralmente como parte da série Primeira Vez, que integra os projetos dos 100 anos da Folha, e também por ocasião do centenário de Clarice.

*

Notas de Crítica Literária - "Perto do Coração Selvagem"

“Todos os homens que estão fazendo um grande nome em arte… fazem-no porque evitam o inesperado; porque se especializam em pôr as suas obras no mesmo encaixe que as outras, de modo que o público sabe imediatamente onde tem o nariz”, dizia certo crítico de arte a Jolyon Forsyte Júnior e, aconselhando-o a abandonar as suas veleidades pessoais e entrar na rotina comum, acrescentou estas sábias palavras: “E isto é tanto mais fácil para o senhor quando muito acostumado no seu estilo”.

Assim, na bitola comum da arte, o melhor para o artista seria sofrear seus ímpetos originais e procurar uma excelência relativa dentro de uma certa rotina, mediana, mas honesta e sólida. O próprio [John] Galsworthy [dramaturgo] talvez possa ser dado como exemplo do que põe na boca de seu personagem. No entanto, mesmo na craveira ordinária dos talentos, há quem procure uma via mais acentuadamente sua, preferindo o risco da aposta à comodidade do ramerrão.

É o caso da sra. Clarice Lispector, que nos deu no fim do ano passado um romance de dom mais ou menos raro na nossa literatura moderna, já qualificada de “ingenuamente naturalista” por um crítico de valor, numa frase que me parece exagerada. O que se poderia dizer, com maior justeza, é que os escritores brasileiros se contentam em geral com processos já usados, apenas um ou outro arriscando em tentativas mais ousadas.

Quanto mais não valesse, o livro da sra. Clarice Lispector valeria essa tentativa, e é como tal que devemos julgá-lo, porque nele a realização é nitidamente inferior ao propósito. Original não sei até que ponto o será. A crítica de influências me mete certo medo, pelo que tem de difícil e, sobretudo, de relativa e pouco concludente. Em relação a "Perto do Coração Selvagem", se deixarmos de lado as possíveis fontes estrangeiras de inspiração, permanece o fato de que, dentro de nossa literatura, é uma performance da melhor qualidade.

A autora —ao que parece uma jovem estreante— colocou seriamente o problema do estilo e da expressão. Sobretudo desta. Sentiu que existe uma certa densidade afetiva e intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos quebrar os quadros da rotina e criar imagens novas, novos torneios, associações diferentes das comuns e mais fundamente sentidas. A descoberta do cotidiano é uma aventura sempre possível, e o seu milagre uma transfiguração que abre caminhos para mundos novos. As telefonistas de Proust —transformadas em divindades fatais—, o corvo de Poe, os objetos de Hoffman, o sanduíche de Harpo Marx são outros tantos processos de protestar contra o ramerrão, o hábito, a deformação profissional causada pelos sentidos mecanizados.

A sra. Clarice Lispector aceita a provocação das coisas à sua sensibilidade e procura recriar um mundo partindo das suas próprias emoções, da sua própria capacidade de interpretação. Para ela, como para os outros, a meta é, evidentemente, buscar o sentido da vida, penetrar no mistério que cerca o homem. Como os outros, ela nada consegue a não ser esse timbre que revela as obras de exceção e que é a melhor marca do espírito sobre a resistência das coisas.

Antigamente se chamavam de “análise” os romances mais ou menos psicológicos, que procuravam estudar as paixões —as “paixões” da literatura clássica— dissecando os estados de alma e procurando revelar o mecanismo do espírito. Hoje o nome convém a um número bem menor de obras. Os romances são mais universalistas, e as suas delimitações perderam muito o sentido e a jurisdição. Aos livros que tentam esclarecer mais a essência do que a existência, mais o ser do que o estar, com um tempo mais acentuadamente psicológico, talvez seja melhor chamar de “aproximação”. O seu campo é ainda a “alma”, são ainda as “paixões”. Os seus processos e a sua indiscriminação repelem, todavia, a ideia de análise. São antes uma tentativa de esclarecimento através da identificação do escritor com o problema mais do que uma relação bilateral de sujeito-objeto.

É desta maneira que a sra. Clarice Lispector procura colocar o seu romance. O ritmo do livro é um ritmo de procura, de penetração, que permite uma tensão psicológica poucas vezes alcançada na nossa literatura moderna. Os vocábulos são obrigados a perderem o seu sentido corrente para se amoldarem às necessidades de uma expressão muito sutil e muito tensa, de tal modo que a língua adquire o mesmo caráter dramático do que o entrecho. A narrativa se desenvolve, a princípio, em dois planos, alternando a vida atual com a infância da heroína.

A sua existência presente, aliás, possui uma atualidade bastante estranha, a ponto de não sabermos se a narrativa se refere a algo já passado ou em vias de acontecer. Todos esses processos, que sentimos conscientes e escolhidos, correspondem à atmosfera do livro, que parece dar menos importância às condições de espaço e tempo do que a certos problemas intemporais encarnados pelos personagens.

O tempo cronológico perde a razão de ser ante a intemporalidade da ação, que foge dele num ritmo caprichoso de duração interior.

Talvez devamos procurar no capítulo chamado “O Banho”, o melhor ponto de apoio para a compreensão de Joana, a personagem da sra. Clarice Lispector. Descobrimos nele que a menina é “diferente”. A tia não sabe porque, nem ela própria. O que esta sabe é justamente o que disse àquela: “Eu posso tudo”. Diante de Joana não há barreiras nem empecilhos que a façam desviar de seu destino —que, quase uma missão, é procurar acercar-se cada vez mais do “selvagem coração da vida”. O coração selvagem pode ser um céu e pode ser um inferno. Como nunca o atingimos, é sempre um inferno especial, em que o suplício máximo seja o de Tântalo.

Joana passeia pela vida e sofre, sempre obcecada por algo que não atinge. Move-se perenemente entre aquelas “formas vãs e aparências” de que o poeta julgou se ter libertado e, como ele, apenas entrevê a zona mágica em que tu se transmuda e a convenção dos sentidos cede lugar à visão essencial da vida. “Eu posso tudo”.

A pobre Joana nada pode, como todos nós. Mas possui uma virtude que nem a todos é dada: recusar violentamente a lição das aparências e lutar pelo estado inefável em que a suprema felicidade é o supremo poder, porque no coração selvagem da vida pode-se tudo o que se quer, quando se sabe querer.

Em pequena Joana se recusava a admitir que as galinhas fossem somente o que lhe diziam que elas eram, o que ela própria via que eram. Como todos os da sua estirpe —de insatisfeitos e obstinados aventureiros dentro do próprio eu— Joana reputava bem desprezíveis os argumentos dos sentidos, aos quais sobrepunha a visão mágica da existência. O seu drama é o de Tântalo sempre pensando tocar o alvo e sentido-o sempre fugitivo ante si. Com a diferença que para Tântalo isso era condição de desespero, enquanto que para ela nisto estava a própria razão de ser da vida e, portanto, a sua glória, a sua esplêndida uniquidade. Única.

Joana pode ser considerada má no sentido em que segue a ética da uniquidade. “Eu posso tudo”. Tudo para ela é possível desde que signifique a realização do seu eu. Os outros nada valem e não importam. Importa o seu corpo que ela mira amorosamente na banheira, a sua alma, que ela sente latejar no escuro do mundo. Em torno dela, o silêncio, porque ela é única e, portanto, só. Acima dela, o coração selvagem da vida, do qual só se aproximam os solitários, que encontram a suprema felicidade no supremo antagonismo com o mundo.

Mas, como a vida, o romance da sra. Clarice Lispector é um romance de relação. É impossível a glória apenas entrevista no supremo isolamento, porque a ela só têm acesso os anormais, que são os supremos desadaptados.

Portanto, Joana vive em um contato com os seus semelhantes. Antes de mais ninguém, com o seu marido. De certo ponto em diante, o livro deixa de ser casulo da heroína para entrar por outros destinos a dentro. O seu esplêndido isolamento, a sua força de exceção, que aterrorizava a tia, se vê obrigada a medir forças com a vida e sofrer as limitações que esta impõe.

Joana perde algo da supremacia que lhe vimos, mas a sua uniquidade a leva a despojar-se de todos os que nela interferem para buscar de novo a solidão. Uma constatação se impõe —ela a sente fatal: os outros vivem mais do que ela porque são capazes de se esquecerem.

Na sua consciência aguçada existe uma frieza que é incompatível com o fluxo normal da existência, e é por isso que ela cede o marido tão facilmente e que reconhece a verdade maior da mulher-da-voz e de Lídia. É visivelmente uma fraca. Mas à sua frente se abrem campinas, que outros não vêem; se abre uma noção de plenitude pela auto-realização que vale a renúncia à comodidade da existência corrente, porque vai lhe permitir (quando?) a vitalidade definitiva de um cavalo novo, perto do coração selvagem da vida.

De tal estofo são feitas as grandes obras. O livro da sra. Clarice Lispector não o é, certamente. Todavia, poucos como ele têm, ultimamente, permitido respirar numa atmosfera que se aproxima da grandeza.

E isto, em grande parte, porque a sua autora soube criar o estilo conveniente para o que tinha a dizer. Soube transformar em valores as palavras nas quais muitos não veem mais do que sons ou sinais. A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade de vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura porque esta primeira experiência já é uma nobre realização.

*

Consultório Literário - "O Lustre"

Como já puderam ver as leitoras este cantinho dominical é mais um conselho de leitura que propriamente uma crítica. No livro aconselhado para a leitura da semana, no balanço feito entre valores e defeitos da obra em vista, sempre os primeiros se sobrepujam aos segundos tornando recomendável a leitura. Não falarei aqui em livros medíocres só pelo fato de serem lançamentos.

Hoje ocupo-me de uma estranha e fascinante figura das letras femininas brasileiras. Trata-se de Clarice Lispector, que depois de nos dar há relativamente pouco tempo seu romance de estreia "Perto do Coração Selvagem" surge agora com "O Lustre", narrativa subterrânea e dolorosa, feita com aquela maneira peculiar à autora e cujo encanto e compreensão não podem ser atingidos, infelizmente, pelo grande público leitor.

A um número muito restrito de leitoras, pois, aconselharei esse volume editado pela Agir, que traz na orelha essas palavras definidoras —"ninguém escreve como Clarice Lispector, Clarice Lispector não escreve como ninguém, só seu estilo mereceria um estudo especial, é uma clave verbal diferente, à qual o leitor custa a adaptar-se".

Entretanto, posso adiantar, que vale à pena esse trabalho de atenção por parte da leitora. É um mundo que se descortina, um triste mundo feito de palavras indizíveis de sentimentos que não vêm à tona do ser e cuja revelação por intermédio da literatura é o segredo de Clarice Lispector. Segredo que a coloca muito acima e muito à parte das escritoras brasileiras atuais. Alguns críticos filiaram-na a [James] Joyce; com a sinceridade que parece ser uma de suas características, a autora diz que desconhece Joyce.

Vencida a confusão que a princípio nos traz a leitura de "O Lustre", compreendemos a figura de Virgínia totalmente, penetramos o seu intrincado mundo subjetivo. Usasse outros termos, outros processos que não os seus próprios meios de expressão e não conseguiria a romancista entre personagem e leitor identificação tão completa. Toda a parte da infância da heroína é um primoroso lavor literário que Clarice Lispector nos dá. Não esqueceremos mais aquela "Sociedade das Sombras" feita entre Virgínia e seu irmão Daniel, tão maciço de vida como uma semente próxima a explodir seu ímpeto vegetal.

História densa e dolorida que se lê de coração opresso e desses personagens enfeixados em "O Lustre" —Virgínia sem Deus, flutuando, buscando-se numa agonia de "por quê", "para quê?", é uma intensa figura de mulher calcada com a verossimilhança e o poder criador que dão a imortalidade aos entes literários.

Esmeralda quase que só pano de fundo para a personagem principal, nos comove com a sua poderosa animalidade frustrada. O Pai, a Mãe de flancos abandonados e frouxos. Daniel perfeito e nítido. Vicente e o impreciso Adriano acompanham-nos depois do livro terminado.

Relemos Clarice Lispector como relemos os poetas e os filósofos. Nem se pode dizer que ela faça romance. É um corte em profundidade de vida que nos dá. Suas páginas são lâminas e as grandezas do consciente e do inconsciente humano.

Erramos: o texto foi alterado

Diferente do publicado anteriormente, a primeira aparição de Clarice Lispector na Folha foi em 1944, em crítica de Antonio Candido ao romance "Perto do Coração Selvagem", e não em 1946. O texto foi corrigido. 

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