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Voltaire de Souza

Nelson Rodrigues ainda assombra o país mais de 40 anos após sua morte

Histórias de 'Asfalto Selvagem' podem ser inconvenientes, mas professor Humberto agradece: 'Meu casamento renasceu'

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Voltaire de Souza

Polêmico. Ousado. Radical. Mais de 40 anos depois de sua morte, Nelson Rodrigues ainda assombra o país com suas peças, crônicas e folhetins.

Tarde tensa na diretoria do Colégio Profissionalizante Doutor Teófilo de Castro.

Maria Clara era a jovem professora de português e literatura. Bateu na porta com cuidado. O diretor era o professor Humberto. “Pode entrar.”

Várias pessoas aguardavam Maria Clara para a reunião. O professor Humberto apresentou uma por uma. “Este é o doutor Moacyr, da mantenedora. Amanda, do comercial. O Dalton, você conhece, professor de educação física. E o Célio é um velho amigo meu.”

Tratava-se de famoso psicólogo e palestrante. Especializado em problemas da adolescência. O professor Humberto foi direto ao assunto.

“Maria Clara, todos sabemos que o jovem, hoje em dia, não quer saber de ler.”

“Verdade, professor.”

“Mas estamos notando um fenômeno estranho nas classes do segundo ano.”

“Qual, professor?”

“Os nossos alunos… de ambos os sexos… e, eu diria, até mais as moças…”

“O que é que têm elas?”

“Explica você, Dalton.”

O professor de educação física bradou. “No intervalo, ninguém quer saber de bola.”

Maria Clara não entendia.

“Ficam lendo esse livro aí. Que a senhora recomendou.”

“Qual livro?”

“‘Asfalto Selvagem’. Parece que vem outro junto.”

Maria Clara esclareceu. “É um romance em duas partes. Uma em que a personagem é jovem e outra em que é adulta."

Era grande a indignação do ex-atleta. Maria Clara se defendeu. “É um clássico. Nelson Rodrigues.”

O doutor Moacyr, da mantenedora, tentava se informar.

“Nelson do quê?”

“Nelson Rodrigues.”

Amanda, do comercial, puxou pela memória. “Cantor?”

O psicólogo Célio aproveitou a deixa. “Não, esse é o Nelson Gonçalves.”

Maria Clara tentou voltar ao assunto. “Nelson Rodrigues. Pai do teatro moderno brasileiro. Nasceu em 1912. Foi jornalista desde os 13 anos. Repórter policial.”

O professor Humberto aprovou. “Naquele tempo, a juventude trabalhava. E dava menos dor de cabeça.”

Maria Clara continuou. “O livro saiu em capítulos, entre 1959 e 1960, no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro.”

O doutor Moacyr, da mantenedora, foi direto. “Comunista?”

“Não. Ele apoiou o regime militar.”

Célio deu um risinho. “Chamavam ele de tarado…”

O professor Humberto pulou. “Como assim, tarado? Suspendo a reunião.”

Em casa, ele abriu o livro. “Quinhentas páginas. Não é bolinho.”

Mas a história fluiu com interesse. No Espírito Santo, um deputado se mata.

“Bons tempos. Quando eles tinham vergonha na cara.”

Surge a Engraçadinha. Corpo inesquecível. Cérebro diabólico. “Caramba. Faz sexo com o irmão.” Humberto coçou a cabeça. “Será que é apropriado para nossos alunos?”

A leitura avançava. Um rapaz corta o próprio órgão sexual a golpes de navalha.

“Onde é que isso vai parar?”

Ligou para Célio. “Você, que é especialista… o que acha?”

Célio não queria saber.

“Me dá o telefone dessa Maria Clara? Achei interessante.”

Foi indecente a proposta. “Se sair comigo, Maria Clara, defendo o livro na reunião.”

Mas o professor Humberto era democrático. “Vamos perguntar aos pais dos alunos.”

O senhor Silvano foi enfático.

“Incesto? Aborto? Adultério? Não pago a mensalidade.”

Célio indagava. “Fala de jornalistas da época… O Otto Lara Resende, o Tinhorão… Será que tem interesse?”

Maria Clara tentou. “A edição tem notas explicativas.”

O professor Humberto decidiu sem dó. Olhou para Maria Clara. “Está despedida.”

A Amanda, do comercial, teve um gesto nobre. “Se vai despedi-la, me despede também.”

Beijou-a com um bafo de Tatuzinho. O palestrante Célio teve um pensamento de compreensão. “É imaturidade. No mundo moderno não pensam nas consequências.”

As histórias de Nelson Rodrigues podem ser inconvenientes. O professor Humberto, secretamente, agradece. “Meu casamento renasceu.”

Livros são capazes de abalar o mundo. A Bíblia. “O Capital”. “Engraçadinha”.

Como sempre, cabe ao leitor decidir.

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