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Série 'Pintando com John' não ensina a pintar, mas isso não é falha

Enquanto programas tradicionais da TV domesticavam a arte, este mostra drama do artista que encara o próprio limite

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Daniel Lannes

Pintor nascido em Niterói (RJ), tem obras nas coleções do Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio)

Pintando com John

  • Onde Disponível na HBO Go

Apresentador de “Pintando com John”, da HBO, o artista americano John Lurie menciona, no primeiro episódio da série, um nome que todos os fãs dos programas de pintura esperariam como um ato de respeito à tradição —o do lendário Bob Ross, de “The Joy of Painting”, que foi ao ar de 1983 a 1994 nos Estados Unidos.

Lurie diz que Ross não estava certo ao dizer que todo mundo pode se tornar um pintor. A pintura, definitivamente, é para poucos. É para aqueles que continuaram a ser crianças depois dos oito anos.

Sou obrigado a dar razão a Lurie quando ele afirma que, até essa idade, as crianças são naturalmente criativas e ousadas, produzindo sérias obras de arte com seus rabiscos brincalhões. Os mesmos que elas entregam aos adultos enquanto se distraem em meio a lápis de cor. E os mesmos que os adultos depois dizem ser facilmente reproduzidos por seus filhos quando se deparam com obras de arte modernas. Pobres adultos.​

Em “The Joy of Painting”, Ross, ensinava carinhosamente a pintar. Numa espécie de antecessor da aula online, agora unânime, ele demonstrava a técnica e o método para construir determinada imagem.

O mais incrível era que, apesar do formato televisivo e do propósito terapêutico, a coisa funcionava. Vários espectadores —artistas ou não— lembram, até hoje, os famosos mantras motivacionais propagados pelo carismático Ross —“não desista, qualquer um pode se tornar um pintor”.

De certa forma, Ross alcançou algo indiscutivelmente genial. Ele desmistificou a cerimônia secular envolta no ato de se encarar uma tela em branco. Artistas profissionais —inclusive este que aqui escreve— sentem, diariamente, o peso da tradição no momento de atacar uma tela em branco. É, de fato, algo assustador.

Décadas depois, surge “Pintando com John”. É apresentado mais como um reality show. John Lurie é flagrado pintando, sofrendo, se questionando. Seu habitat, casa e ateliê, é exibido ao público, assim como a sua vida privada, num enquadramento voyeurístico. Algo até interessante, uma vez que os bastidores do processo pictórico são, até hoje, encarados num nível ficcional.

Nesse sentido, Lurie põe o espectador como testemunha do trágico drama do artista que encara o próprio limite. Ele se expõe ao público. Tanto ele quanto o espectador ocupam o mesmo assento ao analisarem a obra de fora. Já no caso de Bob Ross, a pintura aparecia domesticada, a ponto de ser ensinada àqueles que nunca a encararam. Quase uma ilusão necessária para ter coragem de pintar.

O formato didático e rotineiro que Ross instaurou genialmente não se perpetua, portanto, em “Pintando com John”. Talvez isso não seja uma falha. Afinal, hoje é mais comum o desejo de assistir ao making of de qualquer coisa em vez de se lançar em cena.

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