Descrição de chapéu The New York Times

Prince fez de seu último álbum uma previsão para os tempos sombrios de 2021

Com alegria visceral e insights aguçados, 'Welcome 2 America', criado em 2010, chega agora repleto de atualidades

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Jon Pareles
The New York Times

É quase como se Prince soubesse o que estava por vir.

Em 2010, ele gravou um disco completo, “Welcome 2 America”, repleto de reflexões sombrias sobre o estado da nação, mas decidiu não lançar o trabalho. O álbum saiu em 30 de julho deste ano, como resultado da abertura de arquivos que os curadores do espólio do artista vêm fazendo desde a morte dele há cinco anos.

Diferentemente de boa parte do material que havia emergido até agora dos arquivos, é um álbum completo e integralmente concluído —uma declaração de desilusão que parece muito apropriada àquilo que vemos em 2021.

“Welcome 2 America” foi gravado dois anos depois da posse do presidente Barack Obama, e Prince não parecia ter visto grande progresso. Na faixa-título, mulheres cantam “esperança e mudança”, e Prince observa, secamente que “tudo demora a vida inteira/ a verdade é uma nova minoria”.

As canções falam de racismo, exploração, desinformação, celebridade, fé e capitalismo. “No século 21, cobiça e fama continuam a ser tudo”, Prince canta em “Running Game (Son of a Slave Master)”.

Onze anos depois de o disco ter sido gravado —agora que a década de 2020 trouxe divisões amargas, uma guerra sobre a história e um panorama infernal de consumismo escancarado e mentiras propelidas por algoritmos—, a atitude de Prince não parece pessimista, parece meramente objetiva.

O disco não foi produzido de modo casual. É um dos álbuns mais colaborativos da carreira de Prince, construído em estágios separados e com a ajuda de grupos diferentes de músicos.

Prince começou gravando as faixas instrumentais —sem vocais ou letras— ao vivo no estúdio, com Tal Wilkenfeld no baixo e Chris Coleman na bateria. Depois, ele trabalhou com as cantoras Shelby Johnson, Liv Warfield e Elisa Fiorillo, dividindo os vocais principais e as harmonias com elas.

Morris Hayes, creditado como Mr. Hayes, acrescentou teclados e arranjos de cordas e metais sintetizados complexos e jazzísticos, recebendo crédito como coprodutor em seis das 12 faixas do disco. Prince fez alguns ajustes finais mais tarde, o que incluiu alterar a faixa-título.

Mas ele já tinha lançado um disco em 2010, “20Ten”, e voltou sua atenção a formar uma nova banda para o acompanhar ao vivo (incluindo Hayes e as três cantoras), para uma turnê mundial que duraria dois anos.

A porção americana da turnê recebeu o nome de “Welcome 2 America”, mas o álbum não foi lançado. (A versão de luxo de “Welcome 2 America” inclui um Blu-ray de um show jubiloso dessa banda em Inglewood, na Califórnia).

O percurso de “Welcome 2 America” vai da amargura e derrisão da faixa-título a um otimismo cauteloso, com alguns desvios —afinal, é um álbum de Prince—, que passam pelo prazer físico.

A canção-título telegrafa seu clima desde as primeiras notas –um sibilar de pratos e uma linha de baixo que ascende aos poucos e depois despenca, mergulha, diante de um pano de fundo de acordes ambíguos e cascatas de sintetizadores.

A canção se aproxima do funk, e as mulheres cantam, mas Prince não. Ele simplesmente fala, em tom monótono, a respeito da sobrecarga de informação e das distrações da alta tecnologia, privilégio, fama e cultura, questionando “vocês acham que a música de hoje vai durar?”.

Cantando em harmonia, as mulheres emendam com um lema americano, “terra da liberdade, terra do escravo”.

Na enigmática “1010 (Rin Tin Tin)”, Prince pergunta “o que poderia ser mais estranho do que os tempos que vivemos”, sobre acordes de pianos enxutos. Ele segue em frente, lastimando o “excesso de informação” e a “selva de mentiras”.

homem negro cantando com cabelos ao vento
O cantor Prince durante show no Rock in Rio II, no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, em 18 de janeiro de 1991 - Fernando Rabelo/Folhapress

Em “Running Game (Son of a Slave Master)”, ele apresenta um microcosmo do confronto rico versus pobre e fala sobre a maneira pela qual a indústria da música tira vantagem dos artistas novatos.

No entanto, como é usual no catálogo de Prince, “Welcome 2 America” combina os insights duros às alegrias viscerais. Ele canta a respeito de conflitos irrelevantes sobre religião em “Same Page, Different Book” —“tanto em comum, se você se dignar a olhar”, insiste Prince—, mas suas letras sobre pedras, mísseis e carros-bomba vêm sustentadas por sincopados precisos.

Em “1000 Light Years from Here”, ele parte para o funk latino vibrante para discorrer sobre lembranças quanto à perseverança dos negros, mencionando a crise hipotecária de 2008 e o colapso do setor financeiro. “Podemos viver embaixo da água/ Não é difícil quando você nunca foi/ Parte do país que vive em terra seca.”

Prince escreveu uma nova letra para essa faixa e a usou como uma conclusão otimista para “Black Muse”, uma canção ainda mais mordaz sobre escravidão, injustiça e a dívida dos Estados Unidos para com a cultura negra, usando a faixa no último disco que ele lançou em vida, “HitnRun Phase Two”.

Prince pausa os comentários sociopolíticos em “Check the Record”, um rock-funk sobre infidelidade, e em “When She Comes”, uma balada sensual cantada em falsete que expressa admiração pelo êxtase de uma mulher. (Prince também regravou “When She Comes” para “HitnRun Phase Two”, mas na segunda versão escolheu enfatizar a técnica masculina.)

Quando o álbum acaba, Prince apela por pensamento positivo. “Yes” lembra o gospel-rock turbinado de Sly and the Family Stone. Depois daquele pico, acentuado por um tamborim, é a vez de “One Day We Will All B Free”, um soul reconfortante, em andamento médio.

Mas o “Yes” que Prince pede é uma afirmação de que “podemos virar a página/ Desde que não nos transfiram para uma jaula maior”, e “One Day We Will All B Free” também é um alerta contra a crença inflexível naquilo que as igrejas e escolas ensinam. Prince via uma longa luta à frente.

Tradução de Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.