Em Veneza, Sorrentino acena a Maradona em filme que pode soar inadequado

'A Mão de Deus' concorre ao Leão de Ouro e pode incomodar defensores aguerridos das pautas identitárias

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Veneza

Os detratores de Paolo Sorrentino costumam dizer que ele não passa de um grande plagiador de Federico Fellini. A fama pode até fazer certo sentido, mas não é exatamente justa com o cineasta de “A Grande Beleza” —a influência felliniana está sempre pairando por sua obra, mas não se pode negar que, a esta altura da carreira, o diretor já construiu uma gramática muito própria, ainda que tenha por base a inspiração no grande mestre.

Em seu novo longa, “A Mão de Deus”, que disputa o Leão de Ouro em Veneza, o diretor assume abertamente essa influência —mas, apesar de tudo, é Sorrentino até a medula. Fellini é citado nominalmente —em uma das cenas, o cineasta de Rimini procura figurantes para um filme— e também em estilo.

Já no começo, há uma sequência que é uma referência ao trânsito caótico do início de “Oito e Meio” —só que, desta vez, as vias romanas cedem espaço às não menos caóticas ruas de Nápoles, terra natal de Sorrentino.

O filme é uma volta do diretor à sua cidade e um relato de sua juventude napolitana. Como se fosse seu “Amarcord” particular, conta com uma série de situações que o diretor trata com doçura e saudade, embora também não faltem momentos melancólicos e até trágicos.

Mas acima de tudo há amor —a uma cidade, a um povo e a uma etapa da vida cheia de emoções e sensações à flor da pele, que configuram o último instante de inocência de uma pessoa antes de sua chegada em definitivo ao mundo adulto.

“Em certo ponto de nossa vida, fazemos um balanço de tudo”, disse Sorrentino, em entrevista à imprensa de Veneza. “Houve uma parte muito cheia de amor e outra muito dolorida na minha infância, achava que poderia achar uma forma cinematográfica de narrar isso. Como fiz 50 anos no ano passado, achei que estava maduro o suficiente para fazer um filme tão pessoal.”

De fato, é sua obra mais íntima até o momento. A trama se passa na Nápoles dos anos 1980, a mesma que sofria com a violência da Camorra e os problemas ancestrais do sul da Itália, mas também a que viu em Diego Armando Maradona, então jogador do Napoli, um ídolo quase sobre-humano —o nome do filme, "Mão de Deus", é uma referência ao famoso gol do argentino numa partida contra a Inglaterra, na Copa do México, em 1986.

“O título me pareceu uma bela metáfora, tem relação com o acaso ou com o poder divino. E eu acredito no poder semidivino de Maradona”, disse Sorrentino, que na abertura do filme cita uma frase do argentino, seguida do provocativo aposto “o melhor jogador de todos os tempos”.

Na tela, o alter ego do cineasta se chama Fabietto, interpretado pelo jovem Filippo Scotti —uma espécie de Timothée Chalamet ao molho mediterrâneo.

“Tem a timidez e senso de inadequação do rapaz que eu era quando tinha 18 ou 19 anos”, diz o diretor, explicando sua escalação, que se revela bem-sucedida —Scotti tem uma certa delicadeza que ajuda a tornar o filme uma experiência comovente.

E, apesar da violência e a tristeza estarem sempre à espreita, é o lúdico que dá o tom à viagem iniciática de Fabietto, que tenta se encontrar por meio de ídolos esportivos, no contato com a marginalidade, na descoberta do sexo.

O rapaz leva a vida num meio pequeno burguês napolitano, em uma família que se diz comunista. Seus parentes são em geral falastrões e extravagantes, e todos estão o tempo todo fazendo críticas ou falando mal dos demais. No fim das contas, porém, há um grande sentimento de ternura entre eles.

A sociedade napolitana tem algo de curioso —é marcada por um machismo extremo, mas as mulheres têm uma enorme altivez, que as faz saber se impor. Não à toa, elas se tornam uma figura central na ordem familiar.

Teresa Saponangelo, que interpreta a mãe de Fabietto, tem a tragédia e a amorosidade adequadas à personagem, assim como o sorrentiniano Toni Servillo —o protagonista de “A Grande Beleza”—, que interpreta seu pai carismático e meio malandro.

Os defensores mais aguerridos das pautas identitárias talvez se melindrem com a maneira desbocada como algumas piadas envolvendo características físicas são mostradas como algo rotineiro, natural —e até “engraçadas”. Para a sensibilidade de 2021, muito do que o filme apresenta soa inadequado.

Mas o longa tem mesmo essa intenção de extemporaneidade, porque não apenas é muito específico de uma outra época, como sobretudo se dedica a trazer uma visão algo romantizada, edulcorada do que foi esse tempo.

Sorrentino, como o Fellini de a partir dos anos 1960, não tem tanto interesse no realismo, mas em uma versão sonhada do real. Para ambos, vale o que diz um dos personagens do filme –“o cinema nos distrai da realidade”.

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