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'Cowboy Bebop' da Netflix fica à sombra do anime japonês original

Adaptação de obra-prima dos anos 1990 se perde em conflito de sensibilidades que desemboca em fórmula americanizada

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Cowboy Bebop

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 16 anos
  • Elenco John Cho, Mustafa Shakir e Daniella Pineda
  • Produção EUA, 2021
  • Criação André Nemec

O conflito de sensibilidades entre as produções hollywoodianas e as japonesas talvez seja um dos mais notáveis na comparação entre Ocidente e Oriente.

Se o soft power sul-coreano já se firma no gosto popular a ponto de levar um Oscar por "Parasita" ou conquistar o mundo com "Round 6" e a China tem lá sua influência com os filmes de artes marciais, a cultura dos animes e mangás japoneses em particular parece um terreno espinhoso demais —ainda que nunca a ponto de impedir o lucro.

"Cowboy Bebop", adaptação em live-action do anime dos anos 1990 lançada pela Netflix agora, prometia apaziguar esse choque de culturas. Depois de diversas decepções, como "Dragonball Evolution", de 2009, ou "A Vigilante do Amanhã", de 2017, a poeira parecia ter baixado, dando lugar a um novo horizonte, que inclui ainda versões de "One Piece" e "Yu Yu Hakusho" a serem lançadas nos próximos anos.

John Cho, Daniella Pineda e Mustafa Shakir em cena de 'Cowboy Bebop', live-action baseado na animação japonesa de mesmo nome - Geoffrey Short/Divulgação

Porém, se essa versão da obra-prima de Shinichiro Watanabe for o tal lugar além do horizonte, não há motivo para se empolgar.

Partamos do princípio de que os 26 episódios da série original estão onde sempre estiveram, intocados e, mais recentemente, até disponíveis na mesma plataforma que agora traz essa adaptação, e que a aposta seria ao menos válida para conquistar um novo público. Este é o lado da recepção, fora das fronteiras criativas. Ponto.

Os trailers vendidos nas últimas semanas, com montagens engenhosas e ritmadas, e mesmo os primeiros episódios, tentam reforçar alguma reverência à produção original, além de talvez uma atualização temática pela via do entretenimento.

Seguindo o mesmo clima de faroeste espacial, com cyberpunk e trilhas que vão do blues ao flamenco ("Cowboy Bebop" é, afinal, sobre corpos e almas ciganos), ao mesmo tempo em que tenta cultivar algum humanismo —que está no cerne de toda a potência dramática do original—, podemos até ser enganados pela sua aparente falta de pretensão.

Logo, porém, se descasca o drama bidimensional e apressado que não deveria ser encarado como uma distorção do original —e não vão faltar fãs trazendo 1.001 comparações, lamentando como viúvas nostálgicas.

Afinal, as melhores reimaginações tendem a dessacralizar suas fontes para encontrar um novo caminho por meio da linguagem, vide o recente "Evangelion 3.0+1.0.1", ou até mesmo certos filmes da franquia "Resident Evil", que dispensam as tramas rasas dos jogos para encontrar uma representação minimalista.

Da mesma forma, a fidelidade dá frutos quando é uma opção pessoal e não uma imposição comercial —daí o sucesso oposto das trilogias "O Senhor dos Anéis" e "Hobbit", de Peter Jackson. Isso para ficarmos na esfera geek.

A grande dificuldade é celebrar essa tentativa como um investimento original quando ela se joga tão francamente na massa de produtos americanizados que nascem de uma propriedade com uma base de fãs consolidada e que reaproveitam fórmulas antiquadas.

Ainda é possível defender esse "Cowboy Bebop" por ele assumir —com vários receios— um lado de filme B, com boas sequências de luta e tiroteio, visuais que remontam à série original com graça e cores, tomando a liberdade de reinventar alguns personagens novos que conversam bem com o clima contemporâneo.

Há mais sugestões sexuais, referências noir e, principalmente, uma diversidade cultural que vêm muito a calhar, com destaque para o sul-coreano John Cho como caçador de recompensas e protagonista Spike Spiegel, e o ator e rapper Mustafa Shakir, com o porte ideal para o ex-policial Jet.

Se a dupla de cowboys —que logo se torna um trio com Faye Valentine, vivida por Daniella Pineda— grita mesmo pela dinâmica "good cop, bad cop", algo genuíno da relação se perde ao conhecermos todas as faces desses personagens logo de cara.

A sensibilidade quase revolucionária do anime, afinal, residia em uma mescla complexa do episódico —em que cada capítulo era independente— e do contínuo —em que éramos convidados a montar o quebra-cabeça humano e filosófico evocado por cada um dos personagens. No lugar disso, há o tal "alívio cômico", digno de Marvel, DC e afins, como se fosse essa a única alternativa para ser espirituoso em meio a uma trama que envolve matança, narcotráfico, orfandade, paixão e traição.

Aqui, por outro lado, em episódios de mais de 40 minutos, o drama se impõe em diversas pausas, por meio de núcleos dignos de novela (o mocinho e seu passado obscuro, o vilão e a femme fatale que se faz de inocente, o ex-policial e sua relação com a filha, a gatuna que quer reencontrar suas origens etc) e que preferem, ao final, a violência como espetáculo do que como consequência melancólica.

Há uma sensação de que a série não fecha as portas para uma possível segunda temporada —preferindo terminar com um Easter egg repentino—, mas também se fecha demais para a felicidade da invenção, a ponto de realmente seduzir as plateias. Mais do que amar e reproduzir, falta a vontade de criar.

Em um dos últimos episódios do anime original, a turma confronta uma dita seita que promete a vida eterna, levando as pessoas para uma realidade virtual e brincando com a estética televisiva como se ela fosse uma religião. Em 1998, o gancho eram os limites entre fantasia e realidade no nascente mundo digital, ainda em transição com o analógico.

Não só esse live-action parece dispensar todo esse mal-estar, como abraça o que carrega de mais nocivo. "Cowboy Bebop" parece encarnar esse mesmo simulacro que há 20 anos era a terrível assombração.

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