Descrição de chapéu
Cinema

'Evangelion: 3.0+1.0.1' faz filosofia com batalhas de robôs e naves gigantes

Filme que fecha quadrilogia mistura ficção científica e simbologia cristã para celebrar a imaginação e a vida

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Evangelion 3.0+1.01: A Esperança

  • Quando Estreia nesta sexta (13)
  • Onde Amazon Prime Video
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Megumi Hayashibara, Megumi Ogata, Yûko Miyamura
  • Produção Japão, 2021
  • Direção Hideaki Anno, Mahiro Maeda, Katsuichi Nakayama, Kazuya Tsurumaki

Toda a franquia "Evangelion" —seja a série original dos anos 1990, disponível na Netflix, ou a quadrilogia de filmes que chega ao Amazon Prime Video— é um bom exemplo daquilo que só a cultura pop japonesa tem sido capaz de produzir nos últimos 50 anos.

Onde mais encontrar uma desinibição capaz de rimar lutas de robôs gigantes, seres extraterrestes, simbologia cristã, filosofia, cabala e metalinguagem? Isso e muitas outras coisas integram "Evangelion 3.0+1.0.1: A Esperança", último da série de filmes que reimagina e continua o enredo da saga.

Para dar a sinopse deste universo se atendo ao argumento, o mundo está enfrentando a invasão de seres alienígenas chamados anjos num futuro não muito distante do nosso. Para combater essas ameaças, alguns adolescentes com sensibilidades aguçadas são convocados para controlar robôs gigantes com componentes orgânicos, os Evangelions —ou Evas.

Entre eles está o protagonista, Shinji Ikari, que a princípio aceita o convite de voltar à cidade de Tokyo-3, acreditando que apenas teria uma chance de estreitar os laços com seu pai, Gendo, comandante da Nerv —organização paramilitar criada para combater os monstros.

Essas linhas são apenas os primeiros minutos do enredo que, a partir de então, vai se enrolando em personagens dúbios, de passados e intenções incertas, em paralelo a planos mirabolantes, reviravoltas e violentas batalhas em grande escala.

O que torna essa animação tão hipnotizante, mais do que a pirotecnia, é sua liberdade de experimentar com gêneros, símbolos e tramas elaboradas sempre na contramão das expectativas.

Afinal, não há qualquer "jornada do herói". O protagonista é uma criança insegura, obrigada a assumir responsabilidades que decidirão o destino da humanidade; toda atitude que toma parece levar o mundo para um desastre pior; o pai recluso não demonstra o mínimo de afeto por Shinji, nem o jovem está disposto a ouvir e entender o que o rodeia.

Esses conflitos se refletem nas decisões formais sob vários aspectos. Basta ver como, depois de um prólogo cheio de explosões, este quarto filme embarca num extenso trecho em que observamos uma pequena comunidade que tenta sobreviver após uma catástrofe provocada por Shinji —agora em estado de choque.

São cerca de 40 minutos observando tarefas e diálogos cotidianos enquanto a personagem Rei Ayanami —que se descobre aos poucos ter um forte vínculo com Shinji— vai ganhando consciência de que não é um ser humano genuíno.

Ao mesmo tempo em que persistem trechos mostrando calcinhas e decotes sem justificativa, em outros, o filme critica esses mesmos paradigmas ao mostrar personagens que, mesmo com os anos, são amaldiçoados a não crescer. Afinal, quanto da cultura pop não se prende a visões infantiloides para agradar aos fãs?

Da mesma forma, quando não estão atirando e matando milhares de monstros em queda livre, os Evas encapsulam os apocalipses íntimos que os protagonistas não conseguem evitar no mundo exterior. Mas, como a própria obra deixa claro, tudo se trata de "novas gêneses".

"Evangelion" é sobre histórias que se repetem. Mas, mais do que explorar universos paralelos como um fetiche nerd, a sacada está na luta de mundos interiores e exteriores, aproximações e afastamentos bem resumidos no dilema do porco-espinho de Schopenhauer —e que no filme surge en passant num livro infantil.

Esse conceito descreve como esses animais precisam se unir, por exemplo, para enfrentar o frio e como logo tem de se separar porque machucam uns aos outros com seus espinhos. É uma fábula sobre a convivência humana que, sob a imaginação de Hideaki Anno —mente por trás da série e diretor-chefe deste último longa—, se transmuta em campos de força, naves espacias que usam cruzadores como escudos, estranhos seres crucificados, explosões que arrasam continentes e outras viagens.

Esses elementos não são mais do que as defesas naturais de qualquer pessoa no relacionamento com um outro e que acabam provocando que cada um se feche numa ficção –ou bolha– particular para poder sobreviver. Não à toa, quando dois personagens vão se enfrentar numa espécie de inferno no último ato, ele é representado a partir das memórias deles —e de tudo o que aconteceu na franquia.

Anno bebe muito na tradição de obras ao mesmo tempo políticas e fantasiosas, como o "Godzilla" original, de 1954, em que o réptil-baleia-mutante repercutia claramente o trauma atômico do Japão. Nascido em 1960, o diretor faz parte da primeira geração que cresceu com uma TV em casa.

Todo essa imaginário consolidado na cultura pop do país desde então se reflete em seus trabalhos, seja em animação ou live-action –ele chegou, inclusive, a dirigir "Shin Godzilla", de 2016, disparado o melhor filme do monstro em anos recentes.

E daí a relevância também de o entretenimento não ser algo descolado do pensamento. Se nos dois últimos episódios da série original a equipe foi obrigada a partir para o experimental para lidar com a falta de orçamento e os prazos apertados, agora, no filme deste ano, a grande produção vem para evidenciar o próprio caráter artificial da obra.

Não são raras as cenas em que, misturando animações bi e tridimensionais, somos descolados da imersão para ver a falsidade dos robôs, dos cenários e mesmo da complexidade abismal da trama. Esse extrato cerebral que pesa ao final do filme como uma pilha de referências, porém, parece mais leve do que deveria.

Diferente de algo como "Mãe!", tedioso filme de Darren Aronofsky que, em 2017, causou frisson por seus paralelos calculados com a Bíblia, "Evangelion" não é do tipo que obriga a busca por algum final explicado no YouTube. Essa estreia decerto vai causar uma enxurrada desses conteúdos, mas que em sua maioria montarão esquemas para amarrar (e achar furos) que mais interessam aos fãs do que ao cerne de "Evangelion".

Com um final definitivo e libertador, a franquia parece recomendar, entre o show de luzes e a investigação psicológica de um elenco de desajustados, que o espectador tome alguma atitude, cresça e não hesite em abusar da ficção para reconhecer a beleza da vida.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.