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'O Homem do Norte' pode desmontar fixação da direita pelos vikings

Filme traz cultura que lembra muito mais a dos indígenas do Brasil pré-colônia do que a do ideal supremacista europeu

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Narrativas de fantasia épica têm sido cada vez mais instrumentalizadas por extremistas de direita e supremacistas brancos nas últimas décadas. Aconteceu com "O Senhor dos Anéis" e está acontecendo com "O Homem do Norte", filme do americano Robert Eggers lançado agora que tenta recriar a atmosfera do mundo dos vikings, retratando a Islândia de mais de mil anos atrás.

cena de filme
Alexander Skarsgård em cena do filme 'O Homem do Norte' (2022), dirigido por Robert Eggers - Divulgação

Não é difícil entender por que a direita raivosa e racista gosta de se apropriar desse tipo de história. Para começar, as tramas e personagens se inspiram com frequência nas mitologias do norte da Europa —em geral as da Escandinávia, mas por vezes também as de povos celtas, como galeses e irlandeses—, retratando culturas supostamente puras e isentas de qualquer influência "não branca".

Seus personagens masculinos representariam um ideal descomplicado de coragem marcial e resistência indômita ao inimigo, sem dúvida um prato cheio para quem quer se matricular num clube de tiro. E as mulheres dessas narrativas costumam exibir uma beleza padronizada e longos cabelos louros que reforçam o estereótipo de pureza europeia.

Ao menos alguns dos lunáticos que invadiram o Congresso americano logo depois da eleição de Joe Biden, em janeiro do ano passado, se veem representados nesses elementos, assim como os "tupinivikings" brasileiros que aderiram ao bolsonarismo –durante a campanha eleitoral de 2018, por exemplo, surgiram memes comparando Jair Bolsonaro a Faramir, personagem heroico e abnegado de "O Senhor dos Anéis".

Para que tais histórias funcionem como simples roteiro ideológico desses grupos, porém, é necessário ignorar a complexidade e a ambiguidade presentes nelas. É nesse ponto que "O Homem do Norte" pode, ironicamente, funcionar como uma ferramenta para desmontar os contos de fadas supremacistas, porque o filme deixa claro que não havia nada de "europeu" nos guerreiros louros e cabeludos da era dos vikings.

A afirmação talvez pareça maluquice, mas é exatamente esse o resultado da pesquisa detalhada feita pela equipe de Eggers durante a produção do longa. O diretor contou com a ajuda de alguns dos principais arqueólogos que estudam a Escandinávia medieval, como o britânico Neil Price, da Universidade de Uppsala, na Suécia, para reconstruir o cotidiano e a maneira de pensar dos nórdicos do século 9º d.C.

O apego quase obsessivo a essas referências trouxe às telas uma cultura que lembra muito mais, digamos, os tupinambás que dominavam a costa brasileira em 1500 do que qualquer sociedade que classificaríamos como europeia hoje.

Com efeito, as estruturas tribais da Escandinávia dessa época, com seu apego aos códigos de vingança, sua religião fortemente influenciada pelo xamanismo —incluindo a crença de que certos guerreiros podiam se identificar espiritualmente com lobos, corvos e ursos— e sua anarquia política não poderiam estar mais distantes da suposta defesa da "cultura ocidental" feita pela extrema direita de hoje.

Isso para não falar, é claro, dos supostos "valores cristãos" dos ideólogos atuais. No filme, personagens cristãos só aparecem como escravos dos escandinavos, sendo acusados de adorar cadáveres torturados, uma maneira plausível de imaginar como um viking pagão enxergaria um crucifixo.

Em suma, o protagonista Amleth e os demais vikings de "O Homem do Norte" claramente não pensam em si mesmos como "ocidentais", "europeus" —e talvez nem mesmo como "brancos". Seu horizonte cultural é muito mais estreito, peculiar e difícil de conceber com a cabeça do século 21. E não deixa de ser irônico também o fato de que a amada do protagonista seja uma serva de origem eslava, enquanto boa parte das teorias racistas dos séculos 19 e 20 consideram os povos eslavos uma "raça inferior", atrasada e indigna de ser considerada 100% europeia. Hitler não curtiu isso.

Por fim, quem se sente tentado a ver no filme uma glorificação da violência viril precisa deixar de lado o fato de que a vingança implacável desencadeada por Amleth é essencialmente fratricida e autodestrutiva. É significativo que a extrema direita se reconheça nesse tipo de espelho.

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