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LGBTQIA+

Ricky Gervais prefere arriscar ser cancelado a deixar de ser divertido

Especial de stand-up chamado 'SuperNature', da Netflix, procura tanto a polêmica quanto a risada do público

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Ricky Gervais: SuperNatureza

  • Classificação 16 anos
  • Produção EUA e Reino Unido, 2022
  • Direção John L. Spencer

Ricky Gervais é um gênio da comédia. E essa não é só uma opinião, sem fundamento, baseada só no número de risadas que o comediante, roteirista, diretor e ator britânico já provocou nesta repórter.

Feioso, esquisito e meio malvado, ele tem um senso de humor peculiar, que a essa altura a maioria das pessoas já conhece e já sabe se gosta ou não, seja porque assistiram às séries de TV que ele criou e protagonizou, seja porque o viram em uma das incríveis cinco vezes em que apresentou o prêmio Globo de Ouro, entre 2010 e 2020, todas divertidíssimas.

Apaixonado por situações constrangedoras, Gervais agredia estrelas de Hollywood que estavam na plateia, falava palavrões à solta e tirava sarro do próprio Globo de Ouro, que desde então caiu em desgraça por se revelar exatamente o que ele criticava nas apresentações, em tom de ironia –o grupo de jornalistas estrangeiros que organiza o prêmio do cinema e da TV é acusado de corrupção e de ser irrelevante e bajulador.

Suas séries são cheia de cenas que fazem o público se encolher no sofá, de tanta vergonha, mas também de passagens engraçadíssimas, inesquecíveis. Além disso, nenhum assunto é proibido para ele, nenhum ponto de vista, por mais politicamente, identitariamente ou até financeiramente incorreto que possa ser considerado.

Provocar tanto risos quanto críticas, com a mesma intensidade, sempre fez parte do DNA de tudo que o comediante apresentou ao público até hoje. Até em entrevistas ele não perde a oportunidade de deixar claro o tamanho do desprezo que tem pela opinião e pela sensibilidade das outras pessoas. "A ofensa é o dano colateral da liberdade de expressão", ele disse, numa delas.

Mesmo assim, sem fazer o menor esforço para se encaixar no que se costuma pensar sobre uma estrela, Ricky Gervais, aos 60 anos, é um dos comediantes mais populares do século 21, considerado o inventor da nova sitcom, o que salvou esse tipo de série de TV da extinção.

A que cimentou seu nome como um dos grandes dos nossos tempos estreou no primeiro ano deste século, em 2001. Era "The Office", em que interpretava um vendedor muito sem graça que sonha em ser uma estrela do rock. "The Office" ganhou uma versão americana, que durou de 2005 a 2013, com o bem menos feioso, nada esquisito, muito menos malvado Steve Carell.

Depois veio "Extras", entre 2005 e 2007, que tratava do mundo dos atores e atrizes de segunda linha e teve a participação de várias estrelas de primeiríssimo time na vida real. Kate Winslet, Daniel Radcliffe, Robert De Niro e David Bowie foram alguns desses nomes.

E, mais recentemente, a brilhante "After Life", que estreou em 2019, terminou em janeiro deste ano e conta a história de Tony, um jornalista de uma cidade pequena que fica viúvo e se transforma em uma pessoa impulsiva, malcriada e que não mede as consequências nem do que faz nem do que fala. Certamente o personagem que mais se parece com Gervais na vida real, fora o senso de humor, a fama e a fortuna.

E agora ele apresenta, na Netflix, um especial de stand-up que estreou em 2019, ficou quarentemado, que nem todo mundo, nos dois anos seguintes, e voltou a ser apresentado neste ano. É "SuperNature", com uma hora de duração. O título, que significa supernatureza, é explicado logo de cara. Gervais diz que vai falar sobre sua certeza de que não há nada além desses 80 ou 90 anos que cada pessoa (com sorte) tem para viver. Não há Deus, não há alma, não há fantasma, não há reencarnação.

De fato, essa é a parte mais inspirada do programa. Mas a comédia stand-up, em particular, está passando por um momento complicado (não que o resto do mundo, muito menos o universo do entretenimento e da cultura, esteja navegando em ritmo de cruzeiro). Dá a impressão de que o público não assiste mais a esse tipo de espetáculo com tanta vontade de se divertir quanto de se ofender.

Ele fala sobre isso, sobre como a cultura "woke" teria botado travas imaginárias em todo mundo, e o cancelamento virou uma coisa corriqueira, que se faz por qualquer motivo. E de como qualquer frase ou atitude pode ser mal interpretada, com direito a grita nas redes sociais, entre outras consequências graves de verdade. E de como parece que as pessoas estão prontas para rir de qualquer coisa, menos delas mesmas.

Aí, como seria quase adivinhável, conhecendo a trajetória deste grande provocador, ele faz todas as piadas possíveis com os temas que mais deram problema nos últimos tempos. Pedofilia, assédio sexual, obesidade, deficiência, nanismo, Hitler, está tudo em "SuperNature". Mas não só.

Dave Chappelle, durante a apresentação do Oscar de 2018 - Lucas Jackson/Reuters

Ele sabe o que vai causar a maior polêmica e não desvia do tema –piadas com pessoas trans. Gervais revela que apoia o direito das pessoas trans, tema recorrente em shows de stand-up desde que o americano Dave Chappelle foi acusado de ser transfóbico, no ano passado, por causa do especial "The Closer", que provocou a fúria da comunidade LGBTQIA+. Mas, assim como Dave Chappelle, Ricky Gervais também dedica boa parte de seu repertório ao tema.

É muito engraçado, mas dá até um frio na barriga de quem assiste, de tão evidente que fica o fato de que ele não resiste à tentação de ser cancelado.

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