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Teté Ribeiro

Talvez Johnny Depp seja simplesmente querido demais pra ser cancelado

Ator já é considerado vencedor pela opinião pública, mas se vai ter que desembolsar US$ 100 milhões é outra história

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São Paulo

São duas as interjeições ouvidas mais constantemente desde a semana passada no tribunal do estado americano da Virgínia, pertinho da capital Washington, onde há mais de um mês os atores Johnny Depp, de 58 anos, e Amber Heard, de 36, se acusam mutuamente de difamação –"objection" e "may we approach, your honor?".

O primeiro, que significa objeção, é a arma escolhida por Camille Vasquez, advogada do time de Johnny Depp, que interrompe quase todas as frases que Amber Heard ou sua advogada, Elaine Bredehoft, tentam completar. Esta, por sua vez, apela para o pedido para se aproximar da mesa da juíza do caso, Penney Azcarate, mas, como essa conversa não é disponibilizada ao público, já que esse é um julgamento real, e não uma série de ficção, como muitas vezes parece ser, não temos como saber qual é a estratégia.

O caso é complexo, mas dá para resumir. Johnny Depp e Amber Heard se conheceram em 2009 quando fizeram, juntos, o longa-metragem "Diário de um Jornalista Bêbado", baseado num romance de um dos grandes amigos de Depp, o jornalista e escritor Hunter Thompson, autor do livro —e personagem principal— de outro filme de Johnny, "Medo e Delírio", de 1998.

"Diário de um Jornalista Bêbado" foi lançado em 2011. Fracasso de bilheteria, recebeu críticas mornas, mas, durante sua divulgação, quando atores e diretores se encontram com a imprensa e dão entrevistas para badalar o lançamento e chamar atenção a ele, Johnny Depp e Amber Heard se reencontraram e se apaixonaram.

O ator Johnny Depp, em cena do filme "Diário de um Jornalista Bêbado", de Bruce Robinson
O ator Johnny Depp, em cena do filme 'Diário de um Jornalista Bêbado', de Bruce Robinson - Peter Mountain/Divulgação

Em 2015 os dois se casaram, e, no ano seguinte, Amber Heard pediu o divórcio e, ao mesmo tempo, uma ordem de restrição contra ele, alegando que o ex-marido a agredia física, emocional e sexualmente porque não tinha controle sobre seu uso de drogas e álcool. No acordo do divórcio, Amber recebeu US$ 7 milhões e disse que doaria todo o dinheiro para duas organizações de caridade, o que não fez até hoje.

Em dezembro de 2018, Heard publicou um artigo no jornal The Washington Post em que afirmava que vinha sofrendo as consequências da fúria da sociedade contra mulheres que faziam acusações de violência doméstica contra homens poderosos e que isso precisava parar. Não tocou no nome de Johnny Depp, mas ninguém a conhecia antes de ela ser a mulher de Johnny Depp.

Três ou quatro dias depois da publicação do artigo, o estúdio Disney avisou o ator que ele tinha sido cortado da franquia "Piratas do Caribe". Pouco tempo depois, Depp foi dispensado de outra franquia ultralucrativa, "Animais Fantásticos", um spin-off da série "Harry Potter", cujo terceiro longa-metragem, "Os Segredos de Dumbledore", foi lançado neste ano, já com o ator dinamarquês Mads Mikkelsen no papel de Gellert Grindewald, que Depp interpretou nos dois primeiros filmes da série, em 2016 e 2018. Há planos de fazer mais dois filmes da franquia.

Aí, ele a processou por difamação, palavra que no dicionário está explicada como "imputação ofensiva de fatos que atentam contra a honra e a reputação de alguém, com a intenção de torná-lo passível de descrédito na opinião pública". Pela perda dos contratos milionários, Johnny Depp pediu uma indenização de US$ 50 milhões à sua ex-mulher. Ela, por sua vez, contra-acusou o ex-marido pelo mesmo motivo, e pediu US$ 100 milhões.

Então, no dia 12 de abril, começou o show. Quer dizer, o julgamento. Transmitido ao vivo pela TV a pedido de Johnny Depp, apesar da tentativa de Amber Heard de proibir a veiculação, vem consumindo a vida de centenas de milhares de pessoas pelo mundo, que deixam seus laptops, tablets ou celulares o dia inteiro conectados no site do canal a cabo Court TV, que o exibe em tempo real.

Virou um fenômeno pop, com milhões e milhões de postagens diárias nas redes sociais, mais surpreendentemente no TikTok, a preferida do público muito jovem, entre 16 e 24 anos, todo a favor de Johnny Depp. O que é curioso, já que o ator, com 58 anos, apesar de universalmente conhecido pelo papel de Jack Sparrow, o tal pirata do Caribe, é um homem branco, cis, alfa et cetera e já está bem mais mais envelhecido do que quando fez os filmes da franquia.

Mas, quando algum evento, qualquer que seja ele, conquista a atenção das pessoas dessa faixa etária, entre 16 e 24 anos, o cálice sagrado de todas as corporações que controlam as redes sociais, além de quase toda forma de entretenimento disponível e do noticiário, acaba virando um metafenômeno. Que será estudado, analisado, dissecado por chefes e subchefes dessas mesmas corporações, a fim de descobrir uma fórmula de replicar o acontecimento.

Depois dessa reação inesperada do público jovem a esse julgamento, pode apostar que outros virão. Reais, em séries, em games, em podcasts, o que seja. O mundo empresarial, pego de surpresa com esse alvoroço em torno do julgamento de um possível espancador de mulheres não vai largar esse osso tão fácil.

É mesmo de se espantar. Em plena era MeToo, um homem poderoso de meia-idade acusado de violência doméstica contra uma mulher linda e quase 20 anos mais jovem que ele. Com ele assumindo que usa drogas loucamente e bebe quase sempre até cair, como Amber Heard mostrou em diversas fotos (ao contrário dos socos na cara que ela alega que levava, as joelhadas nas costas e outras atitudes bem agressivas, mas até agora não comprovadas).

Depp até parece se divertir de vez em quando com a maneira como a advogada de Amber Heard se refere ao "megacopo de cerveja", ou ao "primeiro uísque às nove da manhã".

Talvez essa seja uma batalha entre pessoas de carisma muito desigual. E isso não há movimento social, reparação ou cota que conserte. A distribuição do carisma entre a população humana será sempre injusta. Em qualquer espécie, na verdade. É fácil observar como um cachorro ou um gato carismático atrai as pessoas, que têm atitudes mais amorosas e até versões mais afetuosas das histórias que vivem com eles do que um cachorro ou um gato sem carisma.

Mas o carisma não vai fazer Johnny Depp vencer esse julgamento. Ele já pode ser considerado vencedor pela opinião pública, mas se vai ou não ter de desembolsar US$ 100 milhões é outra história. Isso tudo que está acontecendo no tribunal, todos os "objection" pedidos pela advogada dele e os "may we approach, your honor" pedidos pela advogada dela, além das histórias íntimas que cada um contou, as testemunhas que cada lado levou, tudo isso continua acontecendo porque Amber Heard ainda não conseguiu provar que não estava mentindo quando escreveu o artigo publicado pelo Washington Post.

Se for provado que Johnny Depp deu um tapinha nela durante o casamento, ele será condenado. Pode não ter sido forte, pode ter sido de brincadeira, não importa. Se a violência tiver sido real, não interessa se Amber aumentou a história, inventou uma parte dela ou até iniciou a agressão. Não é difamação se a acusação for verdadeira.

Quanto à repercussão negativa que Heard vem recebendo, pode ser que ela represente no imaginário coletivo o arquétipo da mulher louca, a bruxa, aquele ser mítico que todos os homens (e mulheres) temem, e que era queimada em fogueira na Inquisição.

Ou talvez Johnny Depp seja simplesmente querido demais para ser cancelado. Isso aconteceu um pouco com Michael Jackson. Demorou bem mais, é verdade. Mas, no último mês de fevereiro, 13 anos depois da morte dele, em 2009, por overdose acidental, estreou um musical na Broadway, "MJ", contando a história dele com casa lotada todas as noites.

O espetáculo foi indicado a vários prêmios Tony, láurea mais importante do teatro americano. E olha que o caso de Michael tem bem mais de uma única pretensa vítima. Eram crianças! Meninos de oito, nove anos.

Por outro lado, Woody Allen parece ter sido apagado completamente nos Estados Unidos por causa de uma história velha e bem menos confiável, da qual ele foi inocentado duas vezes pela Justiça. O último filme do cineasta de 86 anos, "O Festival do Amor", lançado no ano passado, rendeu US$ 2.500 de bilheteria no fim de semana de estreia em seu país. Isso, sim, deveria ser um escândalo.

Teté Ribeiro
Teté Ribeiro

Jornalista, autora de "Minhas Duas Meninas", "Divas Abandonadas" e dois guias de Nova York. Foi apresentadora do programa “Saia Justa” e editora da revista Serafina.

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