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'Os Abismos' de Pilar Quintana só decepciona por querer se explicar

Romance da autora do premiado 'A Cachorra' entende complexidade do olhar infantil e dialoga com o clássico 'Rebecca'

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Os Abismos

  • Preço R$ 59,90 (272 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autor Pilar Quintana
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Elisa Menezes

A pequena Claudia, narradora de "Os Abismos", vive em Cáli, na Colômbia, com o pai e a mãe. É uma criança um tanto negligenciada. A mãe gasta um bocado de tempo lendo revistas de fofoca na cama ou cuidando das inúmeras plantas do apartamento. O pai passa os dias fora, administrando o supermercado da família.

A previsibilidade da rotina de Claudia se rompe quando a mãe se envolve com o jovem e atlético marido da cunhada. A partir daí, a criança de oito anos passa a testemunhar discussões explosivas entre os pais e longos episódios de depressão da mãe.

Capa do livro 'Os Abismos', de Pilar Quintana
Capa do livro 'Os Abismos', de Pilar Quintana, publicado no Brasil pela editora Intrínseca - Divulgação

Pilar Quintana, autora do premiado "A Cachorra", se sai excepcionalmente bem ao reproduzir a perspectiva de uma menina observadora que tenta compreender o universo dos adultos —e que de repente passa a questionar noções e princípios que antes pareciam sólidos para ela.

Sem infantilizar a narrativa —desmerecendo a própria riqueza e complexidade do olhar da criança— nem a carregar com construções que soariam por demais incongruentes, o tom que a autora alcança revela um domínio técnico absoluto.

Num primeiro plano, o que se tem é sobretudo a depressão da mãe examinada pelo olhar ansioso e preocupado da filha —e, claro, seu impacto na afetividade e no imaginário da criança. O que Quintana aborda, no entanto, e sem abrir mão de personagens multifacetados e críveis, é uma condição muito mais geral.

Estamos no início dos anos 1980; muitos estereótipos ainda se mantêm. A mãe da narradora, como tantas mulheres, teria, se pudesse, recusado a vida doméstica. Não pôde. Depois de ser forçada a abrir mão de uma vida de liberdade que teria agradado a ela, é impedida de cursar o ensino superior e forçada a se casar com um homem bem mais velho. Então, numa espécie de marcação de uma certa linha sucessória da condição feminina, dá à filha que preferiria não ter tido o mesmo nome que ela mesma carrega, Claudia.

Na segunda metade do livro, os pais da menina —cujo convívio, depois da tormenta, agora depende de um equilíbrio delicado— alugam uma quinta para passar as férias de verão. Há aqui uma tentativa um pouco limitada de dialogar com o romance mais conhecido de Daphne du Maurier, já que a quinta pertence a um homem rico cuja bela mulher, Rebeca, desapareceu há muitos anos.

Ao longo do verão, o episódio do sumiço de Rebeca se amplifica na cabecinha ociosa da narradora, assumindo contornos fantasmagóricos e se misturando à angústia difusa que ela sente em relação à situação vulnerável da mãe —que, é visível, também espera se extinguir sem deixar rastros.

Quintana oferece ainda outros paralelos –à história de Rebeca se somam a de Gloria Inés, a amiga de Claudia-Mãe que caiu ou se atirou da sacada do apartamento, e as de três celebridades a respeito das quais a personagem lê obsessivamente em suas revistas de fofoca.

Na visão dela, distorcida pela própria dor, o acidente de carro que vitimou Grace Kelly, a anorexia de Karen Carpenter e o afogamento de Natalie Wood trariam indícios de que todas desejaram morrer. Embora não haja nada obscuro aí, a autora explicita, a certa altura, cada um dos detalhes que ligam a situação de Claudia-Mãe à das mulheres famosas. O resultado é um tanto esquemático —e não deixa de ser uma maneira de subestimar o leitor.

O mesmo impulso de explicar e esclarecer termina por enfraquecer em definitivo o livro. O final, como um clássico romance policial que não funciona sem que todas as pontas soltas sejam atadas, é tão fechado quanto forçado. Ao oferecer, como na narrativa de Du Maurier, uma resolução para o sumiço de Rebeca, a autora aniquila uma série de sentidos que continuariam a reverberar, ampliando e enriquecendo as possibilidades de leitura, se certas coisas permanecessem um mistério.

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