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Bailarinos do Brasil brilham em companhias dos EUA após driblarem a pandemia

Êxito de Jovani Furlan e Daniel Camargo no exterior expõe falta de oportunidades no país, mesmo com políticas de formação

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Amanda Queirós
São Paulo

Quando os teatros fecharam por causa do avanço da Covid-19, em março de 2020, milhares de bailarinos profissionais precisaram pausar uma carreira na qual um ano fora do ar pode fazer diferença. Para o catarinense Jovani Furlan, de 29 anos, e o paulista Daniel Camargo, de 30, porém, esse período difícil representou oportunidade.

Em fevereiro, Furlan se tornou o primeiro dançarino contratado como primeiro-bailarino do New York City Ballet, o NYCB. No mês passado, foi a vez de Camargo galgar o mesmo posto, mas no American Ballet Theatre, o ABT. A dobradinha é inédita e sua relevância pode ser medida pelo peso dessas instituições no cenário da dança.

Isabella Boylston e Daniel Camargo em montagem de 'Romeu e Julieta' no American Ballet Theatre
Isabella Boylston e Daniel Camargo em montagem de 'Romeu e Julieta' no American Ballet Theatre - Rosalie O'Connor/Divulgação

Criado nos anos 1940, o NYCB mantém vivo o legado coreográfico de seu fundador, o russo George Balanchine, grande renovador do balé clássico no século 20, morto em 1983. Essencialmente americana, a companhia passa por um momento de abertura internacional com a contratação de Furlan e, mais recentemente, do chinês Chun Wai Chan.

Já o ABT, surgido em 1939, tem um elenco mais plural. Foi por lá que brilharam algumas das maiores estrelas desta arte, como a cubana Alicia Alonso, que morreu em 2019, e o americano Fernando Bujones, morto em 2005.

Camargo, por exemplo, passa a ocupar um cargo que já foi do russo Mikhail Barishnikov. "São muitos os bailarinos que dançaram ali e me inspiraram", diz ele, que fez os primeiros pliés aos nove anos por influência das duas irmãs mais velhas, também profissionais.

Sua vocação ficou logo evidente. Aos 13, ele ganhou uma bolsa para estudar na Escola John Cranko, na Alemanha, da qual saiu com um contrato direto para o Stuttgart Ballet, onde se tornou primeiro-bailarino em 2013.

Dois anos depois, migrou para o Het Nationale Ballet, na Holanda, onde recebeu duas indicações ao Benois de la Danse, o Oscar da dança. Em 2019, na busca por flexibilidade, se tornou free-lancer, fez filmes e viajou pelo mundo. Nos últimos tempos, por sua vez, recuperou o seu desejo de ter uma casa fixa.

Escreveu então um email para o ABT. Não havia vagas, mas do contato veio o convite para algumas apresentações em junho e julho deste ano. Era na verdade um teste, no qual Camargo provou talento e vigor apesar de ter ficado oito meses parado durante a pandemia. No New York Times, a crítica Gia Kourlas exaltou "o ataque impetuoso, o toque dramático e a energia sem limite" de sua dança durante a temporada.

Foi também um email que levou Furlan ao NYCB. Em 2019, ele pediu uma audição e, uma semana depois, foi convidado a se tornar solista da companhia, algo raro para uma instituição que costumava contratar apenas formados em sua própria escola.

Segundo o artista, esse era o caminho natural após oito anos no Miami City Ballet, uma das poucas companhias com repertório regular de Balanchine e na qual ele já atuava como primeiro-bailarino desde 2017. "Eu me apaixonei pela musicalidade e pela textura dos passos desse estilo", ele diz.

Segundo Jonathan Stafford, diretor artístico do NYCB, "Jovani é um excelente companheiro e um bailarino forte e dinâmico, com grande técnica". Sua promoção já estava decidida quando a pandemia foi declarada e o levou a ficar preso durante 14 meses no Brasil por problemas com seu visto.

Em sua Joinville natal, em Santa Catarina, o bailarino viu sozinho as aulas online da companhia na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, onde estudou dos dez aos 17 anos, incentivado pela avó, e se tornou o único artista da família.

A princípio contra a carreira, o pai recentemente virou parceiro do filho na Furlan Dancewear, marca de vestuário de dança voltada para homens que destina 10% dos lucros líquidos para jovens talentos masculinos no país. A ação já custeou despesas para dois estudantes se especializarem na França e na Romênia.

A iniciativa é uma retribuição pela ajuda recebida por ele, que durante sua formação teve passagens e alimentação custeadas por quem acreditava no seu potencial. Além disso, seu percurso no Bolshoi foi inteiramente gratuito --a filial brasileira da tradicional instituição russa é mantida por patrocínios e recursos vindos de leis de incentivo fiscal com apoio da prefeitura local e do governo estadual.

A trajetória de Camargo, nascido em Sorocaba, no interior paulista, também começou com subsídio público, em instituições como a Escola Municipal de Bailado de Ourinhos, no estado de São Paulo, e a Escola de Dança Teatro Guaíra, em Curitiba.

O sucesso dos dois aponta para o papel de políticas como essas na identificação de talentos e preparo para um mercado disputado, em especial no Brasil, onde ainda são escassas as vagas de emprego com estabilidade e carteira assinada.

Esse cenário se agravou com paralisações, corte de salários e demissões por causa da pandemia. Passada a pior fase desse momento, as companhias nacionais seguem o mesmo caminho das internacionais e já retomaram audições e apresentações, como prova a recém-aberta Temporada de Dança do Teatro Alfa 2022, na qual sete dos oito grupos escalados são brasileiros.

"Existem boas companhias e muitos bailarinos talentosos. As pessoas querem estar no Brasil, mas ainda são poucas as oportunidades", diz Furlan, que sempre quis dançar nos Estados Unidos.

Segundo Camargo, essa realidade poderia ser transformada com educação. "Na Europa, me chamou a atenção o respeito que se tem pelo bailarino. As pessoas deveriam acreditar na arte e investir mais, porque ela muda vidas."

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