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Quem é Damon Galgut, sul-africano premiado por livro sobre traumas do apartheid

Romancista comparado a J.M. Coetzee venceu o troféu Booker por obra que vê uma família branca definhar durante décadas

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Pintura mostra grupo de pessoas brancas apagadas por tinta branca e, no meio, uma criança negra

'Shifting the Gaze', óleo sobre tela do artista americano Titus Kaphar de 2017 pertencente à coleção do Brooklyn Museum, em Nova York Christopher Gardner/Brooklyn Museum/Reprodução

São Paulo

Num trecho de "A Promessa", Anton tenta explicar à sua irmã mais nova, Amor, que é impossível passar o casebre de sua família para o nome da empregada Salome, como era desejo de sua mãe morta. "Porque não", afirma ele. "É contra a lei. Por acaso você não sabe em que país você vive?"

O narrador onisciente da trama, passada na África do Sul em transição pós-apartheid, trata de arrematar. "Não, ela não sabe. Amor tem 13 anos, ainda não foi pisoteada pela história."

Como adianta o nome do livro, toda a narrativa se estrutura em torno dessa promessa não cumprida. A família branca reluta durante décadas em transferir a posse daquela choupana à família negra que a ocupa desde sempre —aí está o simbolismo fundamental de uma história que discute a reparação sem jamais confundir isso com reconciliação.

O romance de Damon Galgut, vencedor do prestigioso prêmio Booker no ano passado, acompanha a evolução da África do Sul de 1986 a 2018, enquadrando a trama dos irmãos Swart ao longo de quatro capítulos, cada um deles dedicado ao funeral de um de seus parentes.

homem branco posa com livro
O escritor sul-africano Damon Galgut, após vencer o Booker por 'A Promessa' - Tolga Akmen/AFP

O que é preciso acontecer para que enfim se cumpra a dissolução do mais emblemático regime de opressão racista do século 20? O ponto de vista de Galgut, escritor branco comparado a J.M. Coetzee como expoente da literatura de seu país, não é nada animador.

"O país hoje está mais fragmentado do que nunca", diz o autor de 58 anos, em entrevista por vídeo. Se no governo de Nelson Mandela, de 1994 a 1999, havia "enorme credibilidade moral e boa vontade" para provocar mudanças, agora "todos os partidos são tomados por palhaços" e "ninguém mais confia que seu dinheiro não vai ser roubado".

Seu livro, contudo, não busca ser um manifesto, segundo um autor que se define "não como um romancista político, mas politicamente consciente". "Eu tenho todo o tempo do mundo para pensar nos indivíduos, mas a raça humana, como um todo, me desespera", acrescenta o escritor, num tom de quem costuma dizer essa frase em todo café com amigos.

Tanto esse cinismo quanto o interesse pelo humano estão em evidência em "A Promessa". Os três irmãos que protagonizam o livro podem soar como arquétipos —Anton é o ex-militar traumatizado, Astrid é a dona de casa autocentrada, Amor é a altruísta com senso de justiça—, mas suas vidas ganham matizes conforme se ouve o tique-taque sufocante do relógio da história.

O livro também se sofistica por uma narração mordaz, composta do que o autor chama de "um coral de vozes contraditórias" que quer espelhar a cacofonia da sociedade sul-africana. Por vezes, essa voz aponta o dedo diretamente para os leitores.

Por exemplo, quando comenta ao finalzinho do livro que Salome sonha em voltar ao vilarejo onde nasceu. "Logo ao lado de Mahikeng, só 320 quilômetros dali, e se a origem de Salome não foi mencionada antes foi porque você não perguntou, você não quis nem saber."

A narração, afirma Galgut, quer não só interagir com os personagens, mas também se dirigir para fora da página, "o que é especialmente ressonante num país como a África do Sul, onde parte dos leitores são de fato cúmplices daquela história".

"Não gosto da experiência de leitura que é completamente passiva, em que você sente algo se desenrolando à sua frente e, quando fecha o livro, acabou. Prefiro a experiência em que você se sente desafiado, acusado, talvez um pouco culpado, e então continua com aquilo na sua cabeça depois que termina."

Durante a entrevista, Galgut reforça diversas vezes que este é um livro desconfortável —e repete isso ao falar sobre a personagem de Salome, uma mulher que não tem voz ativa mesmo estando no centro de toda a trama, num silêncio proposital e eloquente.

"Ainda há milhões de mulheres como Salome neste país, sem acesso a educação e trabalhando na casa de famílias brancas. O novo governo deveria ter tornado essas pessoas parte da democracia, mas na realidade elas não têm agência alguma."

O autor diz ter preferido incomodar os leitores com a mudez de Salome —exceto numa cena nada catártica ao final do livro—, enquanto os personagens brancos decidem sobre seu destino. "Por que há esse silêncio no centro do livro?", pergunta o escritor de forma retórica. "É a mesma pergunta que faço sobre este país. Por que todo o silêncio?"

É uma escolha que não deixa de trazer controvérsia, conforme ele mesmo aponta. Um crítico da London Review of Books, por exemplo, afirmou que Galgut escolhe, em vez de habitar a experiência da personagem negra, "explorar isso incessantemente como um símbolo".

"Não há razão formal para que ela seja invisível ao autor quando tantas outras mentes estão abertas a ele", acrescenta a resenha, apontando que a característica dominante de Salome acaba sendo uma lealdade rasa.

"Foi uma decisão mais emocional do que intelectual, e talvez isso tenha sido ingênuo da minha parte", justifica Galgut agora. "Porque, claro, neste momento político há um intenso debate sobre quem fala por quem."

O próprio autor se desconforta, como se vê. Sinal de que as contendas raciais ainda estão longe de resolvidas, um sentimento com que brasileiros podem bem se familiarizar.

Isso faz lembrar o pensamento de um personagem de "A Promessa" ao ver corpos negros e brancos lado a lado num necrotério pós-apartheid. "Agora a gente morre um do ladinho do outro, numa proximidade íntima. Falta só resolver esse negócio de viver."

A Promessa

  • Preço R$ 69,90 (308 págs.)
  • Autoria Damon Galgut
  • Editora Record
  • Tradução Caetano W. Galindo
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