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Bia Braune

Geração do TikTok e YouTube pode descobrir filmes de Jean-Luc Godard

Se o app fosse Cannes, cineasta venceria na categoria cenas icônicas do cinema francês, clipadas em até 15 segundos

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Se o TikTok fosse o Festival de Cannes, não haveria qualquer dúvida ou polêmica. Jean-Luc Godard, morto nesta terça-feira (13) aos 91 anos, ganharia todas as Palmas de Ouro na categoria cenas icônicas do cinema francês, clipadas em até 15 segundos.

Retrato de Jean-Claud Godard
Retrato de Jean-Claud Godard - AFP

É assim que as novas gerações têm acessado o cineasta, morto agora mas tão desaparecido do nosso convívio quanto as antigas fitas de VHS que o colocavam nas prateleiras mais recônditas da videolocadora. Quando muito, elas tinham uma etiquetinha já sem cola, indicando "europeus". Obra e graça de algum atendente cinéfilo, certamente.

No meu caso, a tal etiquetinha sempre colou. Faço parte desse cineclube de esquisitões que ainda têm prazer em ir ao cinema para assistir a filmes inteiros e que não sejam da Marvel. Com um agravante —os do Godard exigem loucas escapadas do batente.

Justiça seja feita, graças ao streaming e ao YouTube, não é de todo impossível rever pedaços maiores da filmografia do autor de "Alphaville", "O Demônio das Onze Horas" e "Masculino-Feminino" no conforto do próprio sofá.

Contudo, apesar de razoavelmente facinho no digital, por que raios Godard parece ainda tão hermético? Incapaz de ser chamado pela intimidade do primeiro nome. Inacessível e —que me perdoem os godardianos convictos— com fama de chato.

Por anos, eu mesma tive a sensação de que faltava algo àqueles seus tesouros. Um "je ne sais quoi" jamais revelado pelos enquadramentos originais e diálogos cirúrgicos.

Nessa busca inglória por respostas, confesso já ter descido às esferas mais sórdidas do submundo do cinema, apelando a um remake que tinha o Richard Gere acossado pela câmera e exibido sábados à noite, na "Sessão de Gala" da Globo.

Só sei que envelheci. Amadureci. Eu me dei por satisfeita em considerar o diretor responsável pelos filmes mais antológicos e brilhantes que nunca consegui amar. No bar, entre esnobes e sinceros entusiastas, me acostumei a ser reputada pela falta de sensibilidade. Até que Agnès Varda jogou uma luz sobre a questão.

No documentário "Visages, Villages", de 2017, essa que foi a mulher pioneira da nouvelle vague, dona do olhar mais caloroso da cinematografia francesa, marcou um encontro com Godard —e tomou uma portada na cara. Isso mesmo. Diante das câmeras, Godard foi capaz de deixar a amiga no vácuo. Tendo escrito apenas um recado, despareceu.

Ali, eu entendi tudo. Ou quase tudo. Acredito que o virtuosismo desse gênio esteja presente justamente na sua ausência. Naquilo que ele não mostrava ou explicava, apenas jogava na cara da gente para confundir. Sem ternurinhas sentimentais para nos adoçar a boca, sobretudo o café que não tomou com Varda. Apenas aquele bolo que deu, recoberto pela gauche ganache de um artista cínico e folgazão que sorri de canto de boca.

Com toda a minha lógica e racional admiração, espero que a geração TikTok possa redescobrir Godard "comme il faut", enquanto vive sua vida tão mais frenética. Pulando de cena em cena, até preencher as lacunas de sentido que o mestre deixou, de propósito. Quiçá lançando a trend "eu vos saúdo, Godard". E uma dancinha.

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