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Filmes

Jean-Luc Godard ajudou a enterrar a censura da ditadura militar no país

Cineasta melhorou o Brasil ao criar filme vetado por José Sarney que foi exibido sob tensão no auditório da Folha nos anos 1980

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Depois de derrubarmos a ditadura, em 1985, não esperávamos José Sarney como presidente. A primeira frustração havia sido a derrota das Diretas Já, no ano anterior, após comícios espetaculares em quase todo o país.

A rejeição às Diretas, a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral (pequena compensação para tanta desgraça) e, fatalidade, sua morte antes da posse, com a unção de Sarney, esfriou um país (ao menos para minha geração) que se queria lindo.

O cineasta Jean-Luc Godard - AFP

Por isso, a lutava continuava.

A panela havia fervido com as manifestações pelas Diretas Já e, principalmente, com a explosão das bandas roqueiras, não se pedia licença para ridicularizar os militares e protestar contra a carestia e a falta de liberdade.

Depois de abolir a censura dos militares às obras culturais, quando se inventou uma tal comissão integrada até por Chico Buarque (!) —que logo abandonou a tarefa—, o fraco Sarney achou que os limites pareciam estabelecidos e que todos viveríamos dentro do cercadinho daquela mediocridade. Com a possibilidade de irmos juntos à missa aos domingos.

Esqueceram de combinar com o diabo e ele colocou a cara e o rabo para fora com "Eu vos Saúdo, Maria", de Jean-Luc Godard. Como até Jair Bolsonaro sabe, o filme é uma delicada fábula sobre sexo e amor envolvendo José e Maria em tempos atuais. É um nada se comparado à presença libidinosa de Damares Alves.

Logo começaram os boatos de que a Igreja Católica teria pedido a censura ao filme. Imagine Godard, que sempre foi um cineasta cult, de poucas plateias, transformou-se numa entidade e passou a ser citado até em discursos pelos deputados.

O Brasil que queríamos lindo surgiu de repente na sedição —cópias piratas do filme começaram a ser vendidas pelos camelôs em ruas de São Paulo e Rio de Janeiro. E então Sarney vetou o filme.

E nós, na Folha Ilustrada, caderno que era a ponta de lança da cultura urbana no Brasil, realizamos o golpe fatal para testar de fato o retorno à democracia —a exibição no auditório do jornal da obra de Godard.

Sedição completa. Desobediência civil. Fomos para o pau.

Parte da equipe da Ilustrada era oriunda da Libelu, a facção universitária de tendência trotskista.

Estávamos acostumados a apanhar da polícia.

Enchemos o auditório de gente como Maria Bonomi, Aziz Ab’Saber, Júlio Medaglia e Davi Arrigucci.

O filme foi exibido sob tensão —e se a polícia aparecesse? Óbvio, todos seríamos presos. Mas não houve nada.

Sarney arregou. E ali foi o golpe final na censura da ditadura militar. É a única alegria política que guardo daquela época —Godard ajudou o país a ser um pouco melhor.

PS: Os religiosos, coitados, entraram na história como Pôncio Pilatos. Quem pediu para censurar o filme a mãe de Sarney. Segundo Fernando Gabeira conta em meu filme "Não Estávamos Ali Para Fazer Amigos", ela ameaçou o filho: caso a obra fosse exibida, ele não entraria mais em sua casa.

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