Descrição de chapéu
Bruno Andraus Filardi e José Gallucci Neto

Réplica: Estereótipos sobre autismo mencionados por Pondé não fazem sentido

Artigo do colunista traz equívocos sobre o distúrbio, teorias que, à luz das evidências, mais parecem terraplanismo

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Bruno Andraus Filardi e José Gallucci Neto

Existe uma síndrome de predisposição hereditária à determinados tipos de câncer chamada esclerose tuberosa. Nessas famílias a chance de crianças com autismo é grande. A doença é provocada pela presença de mutações nos genes TSC2 ou TSC1, que codificam duas proteínas reguladoras de importantes vias metabólicas celulares. Se alteradas, levam a problemas de saúde, incluindo câncer, epilepsia e autismo.

Com a descoberta desses mecanismos moleculares, muitas crianças do espectro autista devido à esclerose tuberosa melhoram significativamente seu quadro clínico com uma droga alvo.

A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual em tinta nanquim aguada com pincel sobre papel. Tons pretos e cinzas sobre fundo amarelo pálido, conferindo um efeito envelhecido.  A imagem mostra uma sala consultório de psicanálise com um divâ de costas para a poltrona do psicanalista. O divã foi desenhado em formato de 4 peças de quebra cabeças. Sobre o assento da poltrona, 2 papéis em branco e uma caneta. Na horizontal, da esquerda para à direita, na parede da sala há 3 molduras com certificados e uma estante com abajur e livros. Há um detalhe entre os livros na estante - uma pequena bola de cristal. Ao centro, na parede de fundo com papel de parede decorado, há uma grande janela mostrando vários prédios.
ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé - Ricardo Cammarota

O exemplo descrito é uma das muitas causas biológicas conhecidas do autismo. Há desde esses casos, em que uma única alteração genética grave acarreta a condição, até múltiplas variantes genéticas de
menor risco individual em múltiplos genes que se somam para produzirem o desfecho.

As manifestações do autismo, embora dentro de limites relativamente bem estabelecidos, variam entre os
indivíduos formando um espectro clínico —o transtorno do espectro autista, ou TEA.

Desde a década de 1970, em estudos com gêmeos monozigóticos (geneticamente idênticos) e gêmeos dizigóticos (que compartilham material genético dos pais como outros irmãos não gêmeos) ficaram óbvias a predominante associação genética hereditária ao TEA e a pouca ou não associação com fatores ambientais compartilhados.

Os fatores ambientais aceitos como causais são aqueles que provocam alterações no sistema nervoso central em desenvolvimento fetal, como exposição a drogas, infecções ou hipóxia. Hoje sabemos que genética e epigenética são as principais causas do TEA, sendo uma das condições clínicas mais associadas à hereditariedade e menos atribuídas às condições ambientais que se conhecem na medicina.

Fatores comportamentais como a teoria da "mãe geladeira" não guardam qualquer associação causal com autismo. Interpretações dessa natureza reforçam o estigma sobre a família e a criança.

Há abundante e inequívoco material científico para rejeitarmos as ideias de Donald Woods Winnicott. Não apedrejar, por óbvio, mas entender que uma discussão num congresso de saúde mental deve ser norteada por evidências empíricas e avaliação fenomenológica do problema, como propôs Karl Jaspers em 1913 em sua obra seminal "Psicopatologia Geral".

O colunista Luiz Felipe Pondé, em seu artigo "Autismo hype", publicado nesta Ilustrada no último dia 29, comete o mesmo equívoco que muito já o fez criticar outras pessoas.

Junto ao pensamento pungente, muitas vezes contraditório, mas necessário aos atritos que alavancam o amadurecimento do debate, errou ao trazer ideias formuladas a priori das evidências e que, à luz dos conhecimentos atuais, não fazem qualquer sentido. Um terraplanismo, como ele já se referiu em outras ocasiões.

O estereótipo do autista extremamente inteligente, funcional e que serve ao mercado é tão pouco representativo que na última atualização dos manuais médicos, a síndrome de Asperger —que se assemelha ao que Pondé aponta— não consta mais como categoria diagnóstica. O TEA é um distúrbio que causa sofrimento familiar, além de prejuízos significativos no convívio social e profissional do indivíduo.

Os casos de inteligência acima da média são exceção. É comum, pelo contrário, o déficit intelectual. São marcas do quadro a inabilidade na comunicação social e os padrões restritivos e repetitivos de comportamento desde as fases precoces da infância.

Pondé faz bem ao convidar à reflexão crítica sobre os modismos e profissionais com deficitário conhecimento psicopatológico que superdiagnosticam autismo e outros distúrbios. Da mesma forma como alertou para o mercado que se criou nas distorções listadas.

Mais importante ainda, entretanto, é não mistificar o problema nem estigmatizá-lo. E é fundamental não atribuir qualquer culpa às mães que tanto se esforçam, se fazem presentes e lutam pela inclusão dos seus filhos com TEA.

Oncologista do Centro Médico do Ribeirão Shopping e oncogeneticista do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina da USP de Riberião Preto (SP); psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP

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