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No filme 'Os Anos do Super-8', Annie Ernaux faz mais um belo livro

Vencedora do Nobel mescla, como em sua obra literária, memórias pessoais e fatos históricos

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São Paulo

Os Anos do Super-8

  • Quando Cinemateca, qua. (26), às 21h20; Cine Marquise, qui. (27), às 14h; Cinesesc, sex. (28), às 15h50; e Espaço Itaú Frei Caneca, dom. (30), às 20h40
  • Classificação 12 anos
  • Produção França, 2022
  • Direção Annie Ernaux e David Ernaux-Briot


Os leitores já familiarizados com a obra da escritora francesa Annie Ernaux não relutarão em concordar que "Os Anos Super-8" é mais um belo livro da mais recente ganhadora do Prêmio Nobel.

Estão neste breve filme —roteirizado por ela, que também assina a direção com seu filho mais novo, David—os traços fundamentais de sua literatura, dos quais o mais notável é a costura entre os fatos íntimos e os acontecimentos maiores do mundo lá fora.

Na tela, como em suas páginas, essa costura se faz com o fio invisível das palavras de Ernaux, que ouvimos, na voz da própria autora, como narração das imagens originalmente mudas captadas pela câmera doméstica entre 1972 e 1981.

mulher com crianças num barco
Cena de 'Os Anos do Super 8', documentário dirigido por Annie Ernaux com seu filho, que vai passar na Mostra de São Paulo - Divulgação

Dizer "invisível" pode soar paradoxal, até ofensivo —a artista não deixa então uma marca? Ao contrário, talvez sua marca seja mesmo a perseguição dessa invisibilidade, ou transparência, do narrar.

A escrita de Ernaux, muitas vezes definida como "plate" —ou chata, plana—, procura se colocar no nível do cotidiano que narra. Por isso possivelmente não houvesse suporte mais adequado para transpor em imagens os procedimentos dessa literatura do que o dos registros fílmicos em super-8.

Febre burguesa nos anos 1970, as câmeras portáteis permitiam eternizar as conquistas da afluência: os primeiros passeios das crianças em bicicleta, as viagens de verão, a abundância dos Natais.

Ao se inserir ela própria nesse quadro, Ernaux não deixa de observar o dado social embutido no objeto, e o faz desde o início, ao projetar suas palavras sobre as imagens da casa onde vivia com o marido, Philippe Ernaux, e os dois filhos, Eric e David, em Annecy.

"Dentre o afluxo de bens que se podiam adquirir nos anos 1970, a câmera era para nós o objeto de desejo por excelência, bem mais que a lava-louças ou a TV em cores. O filme representava uma captura verídica da vida e do mundo, mesmo se os filmes eram mudos."

Captura da vida e do mundo é o que ela faz em seus livros, deslocando seu pêndulo da memória para a história.

"Os Anos", seu livro mais cultuado e do qual "Os Anos do Super-8" é um parente próximo, traça um panorama da França a partir de pequenos fragmentos cotidianos.

Aqui também, junto dos dilemas pessoais que vão sendo inseridos pela voz contra o plano de fundo das lembranças filmadas, surge a história da França e do mundo.

A análise crítica das relações sociais não desaparece na ternura das cenas em família. A figura da mãe é um exemplo.

Viúva, ela vai viver com a família da filha, consciente de "não combinar com a decoração". Representa, no filme, outro tema caro a Ernaux, o da ascensão social que faz dela, filha de vendeiros formada professora, uma "trânsfuga de classe", no dizer de Bourdieu, ou uma traidora de suas origens, como ela mesma coloca.

Seu próprio lugar como mulher e a tensão da vida de casal transparecem contrapostas a corpos bronzeados e sorrisos de momentos de lazer ocorridos meio século antes.

Da mesma forma, o fascínio daquela época pelos experimentos do socialismo e do comunismo se revela nas escolhas das viagens feitas pelo casal Ernaux ao Chile de Allende e à Albânia pós-maoísta de Enver Hoxha.

Está registrado também o anseio da jovem mãe em seu início de vida de escritora, o caráter quase secreto da atividade que então exercia entre tarefas do lar e da escola.

Esse anseio subjaz enquanto goza férias em um lugar que agradava de forma cenográfica ao gosto francês pelo exótico ("tudo, no interior, era cópia", diz do hotel marroquino).

"À beira da piscina, eu pensava em meu manuscrito terminado, deixado na gaveta da minha escrivaninha, que eu tinha de datilografar antes da volta às aulas. Eu esperava que ele fosse me salvar, mas não sabia do quê nem como."

Nesse vaivém, do íntimo para o público, manejando com sutileza as escalas, Ernaux se salvou. E aqui, como nos livros, nos lembra de que mesmo o mais mínimo ato compõe quadro maior do tempo.

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