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'A Morte É Meu Ofício', livro dos anos 1950, ousa dar voz a oficial nazista

Romance de Robert Merle joga ao leitor o ônus de fazer todo o contraponto por conta própria

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Alex Castro

Escritor, é autor de "Atenção." (Rocco)

A morte é o meu ofício

  • Preço R$67,90 (320 págs.); R$ 47,90 (ebook)
  • Autor Robert Merle
  • Editora Vestígio
  • Tradução Arnaldo Bloch

Uma das grandes alegrias da literatura contemporânea é a possibilidade de termos acesso a vozes que antes não ouvíamos, de penetrarmos na consciência de novas pessoas.

Mas existirá um limite para essa empatia? Será que tudo entender não traz o risco de tudo perdoar? Afinal, sabemos o quão facilmente um documentário sobre a natureza, dependendo da edição e narração, pode nos fazer torcer pela leoa e não pela gazela. Então, dar voz, sim, mas para quem?

Homem de chapéu e casaco diante de uma bandeira nazista
Francis Lederer em imagem de divulgação do filme 'Confissões de um Espião Nazista' (1939) - Divulgação

Essa é uma das principais questões trazidas por "A Morte É Meu Ofício", romance do escritor francês Robert Merle que sai agora no Brasil pela editora Vestígio. Ele lutou na Segunda Guerra, esteve na retirada de Dunkirk, não conseguiu pegar seu navio e foi prisioneiro dos alemães por três anos.

Seu primeiro romance, de 1949, foi sobre Dunkirk, narrado do ponto de vista dos soldados franceses e, neste segundo, escrito há 70 anos, ele opta por dar voz aos seus inimigos. O narrador é Rudolf Lang, comandante do campo de concentração de Auschwitz, que conta a história de sua vida desde a infância sob o jugo de um pai carola até o julgamento em Nuremberg.

Merle nos propõe um perigoso mergulho de empatia radical na mente de um nazista da SS. O documentário "Shoah", obra de 1985, de Claude Lanzmann, também se arrisca a dar voz aos oficiais nazistas, mas sempre lado a lado às vítimas e aos observadores passivos, de modo que um discurso se contrapõe ao outro. Em "A Morte É Meu Ofício", o risco é maior, já que só o narrador Rudolf Lang fala, jogando ao leitor o ônus de fazer todo o contraponto por conta própria.

O toque de gênio de "A Morte É Meu Ofício" é, em suas páginas finais, puxar o tapete do narrador-protagonista. Quando Rudolf Lang descobre que Himmler, seu superior imediato e quem o havia encarregado pessoalmente da "Solução Final", havia cometido suicídio sob custódia dos Aliados, fica furioso com essa traição.

"[Himmler] me traiu. Ele deu ordens terríveis e, agora, deixa-nos sós para enfrentar o vexame. Em vez de dizer ‘Sou o único responsável’, veja o que ele fez! Ele se esquivou! Ele que eu respeitava como a um pai!"

Capa de 'A morte é meu ofício', de Robert Merle.
Capa do livro 'A Morte É Meu Ofício', de Robert Merle - Divulgação

Mais tarde, já durante seu julgamento, o promotor pergunta a Lang se ainda estava convencido que era necessário exterminar os judeus e ele responde que não. "Por quê?", pergunta o promotor. A resposta é "porque Himmler suicidou-se".

"Isso prova que não era um verdadeiro líder e, se não era um verdadeiro líder, poderia perfeitamente ter mentido ao apresentar o extermínio dos judeus como uma medida necessária."

O que Lang buscava, desde criança, era um líder que permitisse a ele abdicar da responsabilidade por suas próprias decisões. O que o líder ordenasse, por ser o líder, seria automaticamente correto e deveria ser obedecido. Nesse universo moral, o único crime possível era obedecer a ordem de um falso líder. Daí o suicídio indigno de Himmler ter roubado Lang de todas as suas certezas.

É nesse momento que o romance também aponta o dedo para o leitor. A indignação de Lang ao perceber que comprou acriticamente a narrativa de Himmler é o alerta para que o leitor perceba que não pode fazer o mesmo com Lang.

A lição desse grande romance que ousa dar voz a um nazista é jamais terceirizarmos nosso sentido moral. Às vezes, o mito não é mito e sacrificamos a vida seguindo um bobo da corte.

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