Descrição de chapéu Artes Cênicas

Espetáculo de balé 'Motriz' mostra bailarinos que dançam como máquinas

Primeira coreografia de Cassi Abranches para o Balé da Cidade de São Paulo traz o ambiente da fábrica e referências ao cinema

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Tudo começa no chão de fábrica. Vestidos de macacões azuis cobertos por outros macacões de plástico, 20 bailarinos realizam movimentos repetitivos, mecânicos.

A primeira cena de "Motriz", coreografia de Cassi Abranches para o Balé da Cidade de São Paulo que estreia nesta sexta, 18, no teatro Alfa, é bastante inspirada pelo cinema. As principais referências de Abranches foram os filmes "Dançando no Escuro" (2020), de Lars von Trier, e "Tempos Modernos" (1936), de Charles Chaplin. No longa de Trier, Björk, no papel de uma operária prestes a perder a visão, canta, dança e diz sonhar que as máquinas estão fazendo música; no clássico de Chaplin, o diretor e ator é quase engolido pelas engrenagens da linha de montagem.

Balé da Cidade de São Paulo apresenta 'Motriz', coreografia de Cassi Abranches.
Balé da Cidade de São Paulo apresenta 'Motriz', coreografia de Cassi Abranches - Silvia Machado

Em "Motriz", as engrenagens ganham aos poucos outros sentidos nos corpos dos bailarinos. São mecanismos de transmissão de movimento, em uma dança conectada e circular de humanos ex machina.

Abranches pesquisou os vários significados e derivações do conceito de força para sua primeira criação para Balé da Cidade como diretora do grupo. O tema (potência, força que move) já estava claro para ela há pelo menos um ano.

"Foi um ano tão difícil que todo dia eu me levantava e, no banho, repetia: ‘Força, vamos lá!’", conta. Ela se refere tanto ao cenário do país e do mundo (crise sanitária, climática, econômica e política), quanto aos desafios enfrentados pelo Balé da Cidade. Abranches se tornou diretora artística da companhia de dança do Theatro Municipal em setembro de 2021. O Balé estava havia um ano sem diretor após o afastamento de Ismael Ivo (1955-2021) do cargo.

Um pouco depois de ela assumir a direção, o Balé teve de sair de sua sede na Praça das Artes. Em 2020, os bailarinos se mudaram para o complexo ao lado do Municipal, depois de trabalharem por mais de 40 anos em uma sede provisória. A alegria durou pouco: entre março daquele ano e outubro de 2021, tiveram que ficar em casa, por causa da pandemia. Quando retornaram ao trabalho presencial, os andares destinados ao Balé da Cidade foram interditados por questões técnicas e de segurança.

Mas a companhia sem-teto manteve a produção. Estreias foram criadas e ensaiadas na cúpula do teatro, como "Muyrakitã", ou nas salas de aula da Escola de Dança de São Paulo, na Praça das Artes, caso de "Fôlego". As criações mais recentes, como "Sixty-Eight" e "Inacabada", foram feitas em uma academia particular de dança, que cedeu o espaço para o Balé.

Nesta academia também foi criada "Motriz", dança que diz muito da potência dos bailarinos e de sua resistência em se manter em pé, nas palavras de Abranches. Dessa força estranha surgem outras camadas para a coreografia.

A fábrica e suas engrenagens vão aos poucos se humanizando. Uma mulher percorre o palco aos trancos e barrancos, constantemente atropelada pela pressa de uma pequena multidão, cena que lembra as ruas movimentada das metrópoles no final de um dia de trabalho. A maioria esbarra indiferente na bailarina, mas alguns poucos a amparam.

Balé da Cidade de São Paulo apresenta 'Motriz', coreografia de Cassi Abranches.
Balé da Cidade de São Paulo apresenta 'Motriz', coreografia de Cassi Abranches - Silvia Machado

Aparecem forças novas. A de atração e repulsão em um mesmo campo magnético se materializa no pas-de-deux de um o casal amarrado por grossas faixas de elásticos. A violência, uma consequência da força desmedida, segundo Abranches, chega em massa, com símbolos corporais como o "mãos ao alto!" das batidas policiais e a mão que silencia tapando as bocas. Mas também em posturas de resistência: a palma da mão estendida de uma mulher dizendo pare, o braço para o alto com o punho cerrado de ativistas.

O clima muda quando entra em cena o que a coreógrafa chamou de "força da natureza". Em um solo fluído, uma bailarina flutua. É quase uma entidade: Abranches usou como inspiração elementos de dança de orixás femininas, mas que se manifestam como pequenos toques, nada explícitos. Mais à frente, as filhas dessa quase entidade surgem em movimentos mais desconstruídos. Em todo o espetáculo, a presença das mulheres é marcante.

Muitas imagens e ideias coreográficas apareceram quando Abranches ouviu a trilha, composta a seu pedido pelo BaianaSystem, grupo que ganhou o Grammy Latino em 2019 com sua mistura de guitarra baiana, reggae e sistemas de som populares na Jamaica.

Mas o começo não foi tão fácil. Por formação, Abranches está acostumada a fazer coreografias calcadas na música, uma característica do grupo Corpo, no qual ela dançou por 12 anos. "Quando recebi a música do BaianaSystem, bateu um desespero. Era algo diferente, sem ritmo definido ou pulso marcado." Foi tranquilizada pelo marido, Gabriel Pederneiras, também do clã do Corpo e que assina a iluminação de "Motriz". "Ele me disse: e daí que você sempre fez de um jeito? Agora, faz diferente."

Deu certo: em muitos momentos de "Motriz", o que dá ritmo e pulso é a força do próprio movimento de dança para então, na cena final, a potência sonora e a corporal se unirem. Os bailarinos tremem como se tivessem recebido um choque – seja de um fio desencapado, seja de um desfibrilador – e a corrente elétrica é descarregada por todos os poros dos corpos dançantes.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.