Por que o mercado de HQs no Brasil tem cada vez mais obras de vários outros países

Setor dos quadrinhos vive auge da diversificação, com títulos que saem do eixo americano de DC, Marvel e Disney

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Página 9 de degustação de

'Filho de Ladrão', adapção do romance chileno de mesmo nome por Christian Morales e Luis Martínez Divulgação

São Paulo

Quem entra hoje numa livraria e vai parar, por acaso ou interesse, na seção de quadrinhos, viaja pelo mundo. Pode ir para a França e além, guiado pelos seios à mostra de "A Louca do Sagrado Coração", clássico erótico de Moebius e Jodorowsky.

Ou então fazer uma viagem mais curta —no sentido geográfico, mas não no sentido psicológico— para a Argentina de Alberto Breccia e Héctor Oesterheld, que provocam o leitor com o traço mais comportado de Sherlock Time ou com o chiaroscuro inebriante de "Mort Cinder".

Capa da HQ 'Mort Cinder', da editora Figura.
Detalhe da capa da HQ 'Mort Cinder', da editora Figura - Divulgação

A cada dia HQs de mais países alcançam o mercado brasileiro, o que poderia ser impensável tempos atrás. Essa diversificação nas nacionalidades de obras publicadas aqui tem muito a ver com a chegada dessas obras às livrarias, diz Paulo Ramos, professor da Unifesp e pesquisador da área de quadrinhos. Até os anos 1990, diz ele, HQs eram nativas das bancas de jornal.

Com a exceção de poucos títulos, como o francês "Asterix" e o belga "Tintim", que saem em formato de livro desde os anos 1970, o mercado era dominado por publicações em revista. Esse espaço era dividido principalmente entre as americanas Marvel, DC e Disney.

Quando o formato em livro começa a ganhar força, sem exigir a periodicidade das publicações em revista, editoras especializadas como a Conrad, a Devir e a Ópera Graphica passam a explorar novos quadrinhos americanos e japoneses e as HQs italianas e francesas ganham atenção.

Com o sucesso desse movimento, grandes casas editoriais passam a ver um novo nicho de leitores, dando origem a iniciativas como o selo Quadrinhos na Cia., da Companhia das Letras, e a editora Nemo, do Grupo Autêntica. Também surgem novas editoras dedicadas apenas às HQs em formato de livro, como a Veneta. O resultado é a pujança que vemos hoje.

"A produção de quadrinhos está maravilhosa", diz Rogério de Campos, criador e editor-chefe da Veneta, a despeito do que ele chama de "desastre econômico promovido por esse governo, com censura, com o desmonte das estruturas de cultura, dos subsídios, dos incentivos".

Campos diz que o interesse por novas obras começou de baixo para cima. Jovens com o acesso à internet começam a se informar sobre o que acontecia lá fora e até mesmo a consumir essas obras pela internet, criando um nicho que viria a ser reconhecido. Ele também atribui ao setor público esse êxito.

A partir de 1988, com a Constituição Federal, "uma política de Estado incluiu quadrinhos e os reconheceu como uma forma de linguagem artística legítima e importante para o país". "E mesmo que o Estado tenha parado agora, não tenha política cultural nenhuma, os artistas pegaram o impulso e continuaram", afirma.

No final do ano passado, a Veneta publicou "Filho de Ladrão", adaptação em HQ do romance de mesmo nome do chileno Manuel Rojas pelos também chilenos Christian Morales e Luis Martínez. Na história acompanhamos Aniceto Hevia, que descobre que seu pai não era quem ele acreditava, o que o leva a uma trama sobre os nômades urbanos da América do Sul, que cruzam as fronteiras no continente.

Junto às grandes editoras e a editoras especializadas como a Veneta, surgem casas como a Pipoca & Nanquim e a Comix Zone, que viabilizam a publicação de HQs com a pré-venda das edições na Amazon, e como a Risco e a Figura, que lançam suas obras através de financiamento coletivo pelo Catarse.

Com mais casas editoriais no jogo, aumenta a procura por obras novas, que ainda não tenham seus direitos de publicação comprados —o que promove um novo fôlego de diversificação.

Foi o caso de Rodrigo Rosa, quadrinista, ilustrador e criador, junto a sua mulher, Ivette Giraldo, da Figura. A editora nasceu em 2016 com a publicação de "Sharaz-De", adaptação de "As Mil e Uma Noites" feita pelo italiano Toppi.

A escolha por começar com a obra desse mestre dos quadrinhos até então pouco conhecido no Brasil vai ao encontro do projeto editorial da Figura, que busca publicar grandes autores que não receberam a devida atenção aqui.

"Autores europeus vêm sendo publicados no Brasil de uma forma um pouco errática desde os anos 1980, mas eu acho que é algo que foi tomar força mesmo a partir dos anos 2000", diz Rosa, que já publicou nomes como a chinesa Zao Dao e o argentino Alberto Breccia.

Não só publicou Breccia como trouxe ao Brasil seu grande clássico, "Mort Cinder", que narra o encontro de um homem com o imortal "homem de mil mortes" que dá título à obra. A publicação chamou a atenção de outras editoras para o autor e para os quadrinhos argentinos, que se destacam nesse novo cenário de importações.

"Nunca se publicou tantos quadrinhos argentinos como agora. Existe uma pulverização de conteúdo, a ponto de termos quase toda a obra do Breccia publicada no Brasil, uma coisa que seria impensável há cinco anos", diz Paulo Ramos, professor da Unifesp e pesquisador do tema.

Esse florescer de quadrinhos argentinos, asiáticos e europeus —e também africanos, chilenos e de cada vez mais origens—, ao lado de um bom momento do quadrinho nacional, é a marca do cenário atual da publicação de HQs no Brasil.

"Isso é algo que estamos tentando fazer nos últimos anos, direcionar a atenção também para artistas europeus e latino-americanos, além do trabalho feito com os brasileiros", explica Emilio Fraia, editor do selo Quadrinhos na Cia., da Companhia das Letras.

Fraia conta que aprendeu a ler com quadrinhos e desde cedo teve contato com obras que fugiam do cenário mainstream, como a adaptação de Franz Kafka feita pelo argentino Leo Durañona. "Assim como na literatura, esse tipo de variedade sem dúvida enriquece o olhar e a experiência do leitor. A ideia é tentar seguir explorando essa variedade."

Questionados sobre até onde esse melhor momento do mercado de quadrinhos vai durar, os entrevistados ficam divididos.

Paulo Ramos não é completamente otimista e receia que esse cenário possa ter prazo de validade. "O mercado dos quadrinhos é muito caro. Essa equação talvez se torne insustentável em algum momento." Já Rosa é mais otimista e acha que a tendência é que o cenário se consolide. Lembra que os leitores têm se mostrado bastante resilientes.

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