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Livros Onde se fala português

José Saramago acenou à utopia ao trazer ecos do passado até o presente

Autores como o português, que faria cem anos, obrigam a falar da escrita como um compromisso com seu tempo

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Teresa Cerdeira

Professora emérita da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista na obra de José Saramago

Escrever sobre José Saramago neste dia em que o Brasil comemora a vitória de Lula para a Presidência da República é um encontro feliz.

Ambos são filhos de camponeses, migrantes do campo para a cidade. Lula é um quase-personagem de José Saramago, um daqueles sem-terra a que ele se refere na abertura do belíssimo álbum fotográfico de Sebastião Salgado com música de Chico Buarque, publicado um ano depois da chacina de Eldorado dos Carajás. "Terra", se chama.

josé saramago caminha diante do mar
O escritor português José Saramago em imagem do livro 'Os Seus Nomes', da Companhia das Letras - Fernando Peres Rodrigues

Daí que falar de escritores do porte de Saramago obrigue necessariamente a falar de escrita como compromisso. Compromisso inicialmente com a própria escrita, mas compromisso também com o tempo dessa escrita. E nesse imbricamento há como que um grande jogo de sedução literária.

Saramago fala ao seu leitor porque escreve no timbre da oralidade, como um grande contador de histórias, cuja sabedoria nasce da experiência. Ele não teme tangenciar certos códigos narrativos —como o do exemplo, o da argumentação convincente, o do texto de formação— não raro tidos como "arcaizantes".

O leitor se depara com uma escrita exigente, feita de parágrafos densos, que abrigam uma multiplicidade de vozes, em que uma pontuação inusitada o incita a colaborar ativamente no exercício teatralizado de uma leitura em voz alta.

Se Saramago parece não abdicar de um aceno à utopia, não estamos nunca diante de um otimismo banalizado. Se o jogo autoritário e a retórica do ódio ameaçam sombrear o que resta de esperança, a galeria de seus personagens resgata pela ficção a permanência da luz, não porque a ficção seja um alento, mas porque, de dentro dela, esses personagens nos ajudam a encontrar a fenda no muro da história.

Nomear alguns deles não os prioriza, mas serve para compor um painel, entre muitos, na riquíssima série dos seus romances, que nos agarram pela inteligência e pelo coração.

João Mau-Tempo, de "Levantado do Chão", se erige como herói coletivo da revolução agrária do Alentejo, no pós-25 de Abril de 1974, e integra magicamente "o dia levantado e principal", numa cena final em que o sábio narrador nos faz assistir à visão da festa revolucionária através dos olhos de um milhano, ave imensa capaz de enxergar mais longe e de reconhecer, na caminhada vitoriosa dos camponeses, não apenas os mil vivos que lá estão, mas a sombra presente dos 100 mil mortos que se levantam do chão, numa ressurreição que se faz na terra, e sem juízo final.

Blimunda, Baltasar e Bartolomeu garantem o sonho de criar e de voar, contraponto feliz que, em "Memorial do Convento", opõe a passarola do desejo às injúrias do trabalho alienado a que são submetidos os trabalhadores de Mafra.

A escrita polifônica de Saramago negocia sabiamente com as vozes da tradição, e "O Ano da Morte de Ricardo Reis" traz à cena Fernando Pessoa e Borges, mas também Garrett, Eça de Queirós, Cesário Verde e Camões, num requintado exercício de citações, evocações e paródias.

A viagem literária e histórica ao ano de 1936 se torna uma verdadeira rede de linguagens que se abre e finda com duas inversões de uma referência de "Os Lusíadas": "aqui o mar acaba e a terra principia" e "aqui onde o mar se acabou e a terra espera", modos alegóricos de assinalar que estava finda a fantasmática glória da narrativa colonial portuguesa.

Raimundo Silva, modesto revisor em "História do Cerco de Lisboa", ousa inserir no seu trabalho um inesperado "não" que faz cambalear os esteios da história nacional, ao dar a ver a presença inalienável da pujança muçulmana no discurso heroicamente redutor da Reconquista cristã.

E inventando sortilégios contra a morte, um certo senhor José, humilde funcionário da Conservatória do Registro Civil, reivindica a inscrição de "Todos os Nomes" —dos vivos e dos mortos— como igualmente integrantes dos ficheiros da história.

Desafiador da história, desafiador da cultura, desafiador da literatura. Haverá nesse projeto de José Saramago alguma significativa diferença?

Ao fazer dialogar vozes diversas, ao reelaborar linguagens, ao reexaminar textos da tradição, ao trazer, enfim, para o presente os ecos do passado, fazendo vivo o que a letra fixou, Saramago colabora, da forma mais democrática e generosa, com a epifania da história.

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