Cinthia Marcelle pinta objetos em tons de pele para falar de racismo no Masp

Artista mineira, que representou Brasil na Bienal de Veneza, inaugura em São Paulo grande exposição de sua carreira

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'Por via das dúvidas (De vermelho a vermelho)', obra em que Cinthia Marcelle simula um muro com fita crepe Daniel Cabrel

São Paulo

Placas de compensado branco cobrem agora quase totalmente as grandes janelas do subsolo do Masp, o Museu de Arte de São Paulo, deixando à vista de quem está dentro do museu somente alguns galhos de árvore e parte do céu. O piso da área também está pintado de branco, no formato de um retângulo, onde estão milimetricamente dispostos materiais de construção como serrote, cavalete, régua, espátula, luvas e um tonel, simulando um ambiente de construção.

Só há três cores nesta grande instalação de Cinthia Marcelle, não por acaso todas tons de pele pela classificação do IBGE —branco, preto e pardo. Tudo o que está dentro do grande retângulo branco é também branco, enquanto aos objetos pretos e pardos só sobram as beiradas ou o lado de fora da figura geométrica. O trabalho, intitulado "Da Parte Pelo Todo", alude ao racismo e às estruturas de poder na sociedade.

'Por via das dúvidas (De vermelho a vermelho)', obra com fita adesiva vermelha colada sobre papel da mesma cor - Coleção da artista/Daniel Cabrel

"Eu não trabalho com as cores somente pelas cores, sobretudo hoje, que a gente tem uma discussão tão consciente sobre o processo de colonização. Essas estruturas hegemônicas tentam delimitar uma norma, uma regra. E tudo o que é delimitado separa. Mas ao mesmo tempo a gente sabe que não está separado assim", afirma Marcelle sobre a instalação, parte de uma panorâmica sobre sua carreira que abre nesta quarta-feira, no museu da avenida Paulista, e segue em cartaz até o fim de fevereiro.

"Cinthia Marcelle: Por Via das Dúvidas" reúne 49 obras de diferentes momentos da trajetória da mineira de 48 anos, nome de destaque da arte contemporânea que em 2017 representou o Brasil na Bienal de Veneza, quando ganhou menção honrosa por "Chão de Caça".

Além da instalação, desenvolvida para dialogar com a arquitetura do subsolo do museu, estão expostos objetos, fotografias, cadernos de desenho e vídeos, formando um conjunto que dá conta das obsessões de Marcelle —o mundo do trabalho, o universo da educação, o uso das cores e a passagem do tempo. Em cerca de 25 anos de carreira, a artista vem transformando estes temas em obras salpicadas de comentário social.

O racismo, por exemplo, está presente na poética de Marcelle desde o começo. Em uma fotografia de 2003 feita na Cidade do Cabo em parceira com o artista Jean Meeran, ela aparece sentada no banco traseiro de um trem junto com moradores que se dirigiam aos subúrbios, como se fosse um deles.

"Simplesmente peguei o trem das pessoas mestiças —a gente sabe que o apartheid também é uma questão geográfica. E eu estou aqui [aponta para a fotografia], com a mesma cor de pele das pessoas que pegaram o trem para ir para as suas casas", ela afirma.

Segundo a artista, à época da realização deste trabalho, fruto de sua primeira residência artística, o sistema de arte tratava como ultrapassadas as questões de raça e gênero, dominantes na pauta dos museus e galerias hoje, quase 20 anos mais tarde. Marcelle diz achar muito bom o fato de o meio finalmente encarar estes temas.

A exposição é dividida em um setor com obras em preto e branco e outro onde a cor aparece. Quase nada é óbvio ou de rápida assimilação no trabalho da artista, de modo que quem se dispor a ler sobre as obras dela antecipadamente ganha mais compreensão durante a visita.

Nos trabalhos de Marcelle, nenhum elemento aparece por acaso, e a própria escolha dos materiais é determinante, diz a organizadora da mostra, Isabella Rjeille.

Em "R=0 (Homenagem aos secundaristas)", uma cadeira de sala de aula, que remete às ocupações escolares em 2016, é equilibrada somente em uma das pernas por giz. "O resultado é uma instalação que desafia a ordem das coisas para permanecer de pé. Durante as ocupações das escolas, em uma demonstração de força por meio da coletividade, os secundaristas mostraram que, quando as bases se movem, toda a estrutura estremece e se rompe —e, assim, impediram a implementação das medidas, alterando os rumos da educação pública brasileira", escreve Rjeille no livro que acompanha a exposição.

Vista da instalação 'Da Parte Pelo Todo', de Cinthia Marcelle, no subsolo do Masp - Julia Maurano

Outra possibilidade para o visitante é deixar as questões sociais suscitadas pelos trabalhos à parte e se ater somente à estética. Numa das obras mais delicadas da mostra, a artista recortou pedaços de fita crepe branca e os dispôs sobre uma folha de papel da mesma cor, confundindo figura e fundo.

Quem se aproxima vê que as tiras formam o desenho de um muro, intacto em uma das telas da série e destruído em outras. O mesmo procedimento é repetido na cor vermelha. Os quadros mudam de cor com o tempo, porque a fita adesiva amarela devido à cola.

Em outro trabalho, Marcelle criou caixas para armazenar facões usados em rebeliões, levantes e revoltas. Os objetos seriam guardados em maletas forradas com o mesmo tecido vermelho e fofo de caixas de joias, como se fossem relíquias, mas quebrariam caso de fato fossem ali colocados, dado que a dobra das maletas fica exatamente na área da lâmina das facas.

A artista diz gostar de uma leitura da obra feita pela escritora Natasha Felix, que escreveu: "Se a gente não vê as facas aqui, nos perguntamos onde elas estariam agora".

Cinthia Marcelle: Por Via das Dúvidas

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