Ruínas viram fetiche de artistas que levam o caos imobiliário para as galerias

Heitor Ramalho, Manoela Medeiros, André Parente e Pedro Varella atribuem novos sentidos aos materiais de construção

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São Paulo

Enquanto terminava a faculdade, Heitor Ramalho, de 22 anos, descolou um emprego. Seria fotógrafo de uma corretora de imóveis online, as que anunciam apartamentos parecidos com cativeiros —nenhuma mobília, iluminação precária, sujeira para todo lado, banheiros velhos e paredes descascadas.

Instalação de Heitor Ramalho - Divulgação

Naquele instante, ele já atinava para a gentrificação em São Caetano do Sul, cidade onde nasceu, no ABC paulista. O fenômeno ocorre a partir da transformação da paisagem urbana, que valoriza os imóveis e expulsa as famílias de baixa renda de um determinado bairro. Também percebeu que as imagens, armazenadas no celular usado para o trabalho, teriam um potencial artístico.

Nasceu dessa forma a obra "39 Cômodos", que integra a mostra "Futuro Lançamento", agora na galeria Ateliê397. São 39 fotos de apartamentos vazios que expõem a homogeneização imobiliária diante das infinitas possibilidades de decoração, segundo o gosto do locatário. É, em última instância, a padronização da vida na cidade, afinal, a conquista de um lar é moldada a partir da personalidade do proprietário —e vice-versa, numa relação determinista.

Com a série, o artista instiga a ironia entre os preços exorbitantes e a precariedade dos imóveis anunciados nas imobiliárias virtuais. Certo cinismo está presente nas demais obras em exposição. Logo na entrada da galeria, o espectador se depara com "Anúncio". Um cavalete onde se estamparia alguma propaganda do tipo "compro ouro" ou "realize o sonho da casa própria" é preenchida pela imagem de um céu azul com nuvens branquíssimas.

Mais uma vez, Ramalho critica a artificialidade da vida na cidade ao empregar ali uma foto retirada de um banco de imagens. O céu, ou a paisagem como um todo, se converteria em produto, estando também à venda. As construções, porém, se desintegram na malha urbana, tanto para destruir o espaço anterior quanto para erguer um arranha-céu todo modernoso.

A instalação "Montantes" é a resposta ao paradoxo destruição versus construção. O artista empilha britas, emulando um canteiro de obras. No topo de cada montinho, pinta as pedras com um spray dourado, atribuindo um sentido de valor econômico à obra.

Na mostra "O Carnaval da Substância", na galeria Nara Roesler, a artista Manoela Medeiros também encontra a arte nas ruínas. O sentido da desconstrução é, porém, mais vivaz, como o próprio nome da mostra sugere. Não há uma crítica aberta ou uma interpelação no debate urbano, mas o resgate dos materiais arquitetônicos para representar o todo —o lar.

Nas esculturas da série "Still Life", por exemplo, existe uma dimensão intimista e lúdica. As cores desbotadas remetem à intimidade familiar, ao mesmo tempo que as formas dos materiais se tornam joguetes, respeitando a disposição proposta pela artista.

Uma das esculturas tem dois retângulos de concreto pigmentado sustentando tijolinhos. Medeiros ressalta, dessa maneira, os componentes que erguem as nossas casas e, em silêncio, dão forma à vida cotidiana.

Na segunda sala, o espectador se depara com telas escavadas, emulando paredes descascadas pelo tempo. Nesse processo de arruinamento, as mesmas cores claras voltam a aparecer num deslumbramento de supostas aparências antigas das telas.

De modo mais sintético e conceitual, André Parente e Pedro Varella criam novas possibilidades para o fragmentário, com barras de madeira tombadas sobre o chão, em formas ortogonais e diagonais. A exposição "Duas Águas", na galeria Jaqueline Martins, propõe um diálogo entre as esculturas e a própria arquitetura do prédio em que as peças estão montadas.

O encontro de algumas das toras constituem a letra "A", indicando como o material que constitui a galeria pode ganhar outros sentidos. Em "Duas Águas", mais importante é a ideia de decomposição. Uma das barras se liga diretamente ao teto da galeria e logo encontra outros pares formando a peça escultórica —é o valor da parte diante do todo.

Heitor Ramalho

Manoela Medeiros

André Parente e Pedro Varella

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