Entenda como Brian Eno, mestre da música ambiente, atualiza estilo em novo disco

'ForeverAndEverNoMore' desafia a pecha de apolítico do estilo calcado em status cult desde o seu surgimento em 1978

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São Paulo

Depois de seis anos sem lançar trabalhos solo, Brian Eno, fundador da chamada "ambient music", está de volta com "ForeverAndEverNoMore". O músico, famoso pelo caráter minimalista de sua obra, aposta nas palavras e vocais para meditar sobre a emergência climática.

Com letras que saúdam o sol e que jogam luz sobre o valor do trabalho de animais como vagalumes e minhocas, Eno evoca o mito de Ícaro para questionar a relação da humanidade com a terra e a natureza. "Não são músicas de propaganda política para dizer a alguém no que acreditar e como agir", adianta o anúncio da obra.

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O músico Brian Eno - Instagram

Eno mobiliza o arsenal sonoro que marca a música ambiente desde 1978, ano em que ele mesmo inaugurou o gênero em ensaio que o definia como "tão ignorável, quanto interessante".

Em geral, são músicas e discos calmos, baseados na alteração eletrônica de eco, de timbre e de ressonância, na repetição de padrões sonoros, em drones e sons que evocam hélices, sinos, com uma pincelada ou outra de barulhos como cantos de aves e respirações.

Capa do disco ForeverAndEverNoMore, de Brian Eno, com ilustração com um círculo, com sobreposição de um retângulo e formas que parecem antenas
ForeverAndEverNoMore, novo disco de Brian Eno - Divulgação

O objetivo do gênero é ser "capaz de acomodar diferentes níveis de atenção", escreve Victor Szabó, professor da faculdade Hampden-Sydney, no estado da Virgínia, nos Estados Unidos, em sua tese de doutorado, na qual estuda a popularização da música ambiente no Ocidente.

Pela sonoridade vanguardista, o estilo passou longe de produto para consumo generalizado e ficou restrito a círculos cult e galerias de arte, status que persegue o gênero até hoje. No caso de "ForeverAndEverNoMore", uma das faixas do disco apareceu primeiro em uma instalação, em Londres.

"É um gênero visto como essencialmente pós-moderno por borrar as fronteiras entre arte e pop, música e som, experimental e cotidiano. Tudo isso cria um apelo intelectual", diz Victor Szabó, em entrevista por videoconferência.

A pandemia e a busca por tranquilidade sonora, porém, alçaram o gênero a uma popularidade renovada. Por meio de rádios ao vivo e playlists de serviços de streaming voltadas para concentração, melhoria do sono e meditação, discos esquecidos de música ambiente ganharam milhões de visualizações no YouTube. A queridinha da internet "Lo-fi Hip Hop Radio - Beats to Relax/Study" soma mais de 11 milhões de inscritos.

Fãs de carteirinha, porém, protestaram a desvirtuação dos sons obscuros em instrumentos de produtividade. O gênero, antes visto como convite à introspecção, parecia deturpado para servir como trilha sonora "para fazer planilhas", como descreveu Amanda Petrusich, crítica musical da revista New Yorker.

Era comum, nos primeiros discos identificados como "ambient", que as faixas tenham nomes de números ou de palavras que sugerem ensaios e estudos, o que reforçava a fama cerebral do gênero.

O status cult, porém, vinha sem valor político. Nascido na era em que o punk imperava, o "ambient", livre de berros de slogans políticos, era visto até como alienado.

Na coletânea de ensaios "Against Ambience", o músico Seth Kim-Cohen afirma que "a ambientação é uma forma artística de passividade". "Sua política, isto é, o tipo de relação que cria com o mundo em que existe, está contente em deixar que outros eventos e entidades a inundem, sem se perturbar. A ambientação não oferece resistência."

Se esse era o caso de obras inaugurais, como "Discreet Music" e "Ambient 1: Music For Airports" —ambas de Eno e voltadas a pintar paisagens sonoras que evocassem espaços e sensações—, tanto discos como "ForeverAndEverNoMore" quanto álbuns de outros artistas desafiam a noção de que o silêncio do gênero é despolitizado.

"Essa noção de que música ambiente é esteticamente neutra é imprecisa. É uma forma de pensar o gênero que sanciona um consumo passivo de música medíocre, que não apresenta discernimento estético, curiosidade social ou pensamento político", diz Szabó.

Já na virada do milênio, um dos discos seminais do gênero, "Disintegration Loops", do músico William Basinski, serviu de trilha sonora para a angústia que se instalou nos Estados Unidos no pós-11 de Setembro.

Basinski registrou digitalmente fitas analógicas tocadas em loop que, por causa da idade da gravação, se esfacelaram. Sobrou o som desintegrado, composto, também, pelo tempo.

Longe de ser um hino óbvio da geração da guerra do Iraque como "Wake Me Up When September Ends" ou "American Idiot", ambos da banda de rock alternativo Green Day, os loops de Basinski são a reação introspectiva ao sentimento de uma sociedade em ruínas.

Pela capacidade de evocar sensações de angústia e espaços desconfortáveis, a música ambiente nem sempre é agradável de se ouvir, reitera Szabó. "Disintegration Loops", para ele, passa longe de ser uma trilha sonora para um dia de trabalho. Projetos como "The Caretaker", em que o artista remixa música de baile para simular o que seria o som da demência, engrossam esse coro.

Os mesmos aparatos sônicos são usados em outros gêneros primos da música ambiente, caso do new age, diferenciado pela pecha hippie e projeto transcendental de expansão da mente. Segundo Szabó, o "ambient" representa o secular, em comparação com o espiritual new age.

A muralha que separa os estilos é cimentada em questões de gênero, diz o pesquisador. Enquanto a música ambiente é intelectualizada, fria e descolada, o new age foi diminuído por críticos da época como "doce", terminologia associada à feminilidade.

Hoje, fora do circuito comercial das playlists voltadas para produtividade, artistas da nova geração da música ambiente borram as fronteiras que enclausuravam o estilo em uma caixa da frieza e intelectualidade e discutem, inclusive, questões de gênero, caso de Ana Roxane.

De origem americana e ascendência filipina, Roxane se identifica como intersexo e traz o tema para o ambiente, vocalizado em harmonias entrelaçadas a sons aquáticos.

"Um produziu dois/ Dois produziram três/ Essas palavras significam que um foi dividido/ Em yin, o princípio feminino, e yang, o princípio masculino/ Esses dois se juntaram, e, dessa junção, veio um terceiro/ Harmonia", canta Ana Roxane, na abertura de "Because of a Flower", disco de 2020.

Mesmo a defesa do "ambient" como gênero politizado e de alto nível artístico não exclui discos divertidos do cânone, caso de "Chill Out", da banda The KLF, um mapeamento sonoro do sul caipira dos Estados Unidos.

Seja com pautas de gênero, com a mistureba de guitarras country e batidas house ou com a materialização sonora do fim de uma era, a música ambiente, retirada do pedestal em que foi cunhada, conserva o que sempre a diferenciou —potencial para a criação de espaços.

ForeverAndEverNoMore

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