Chico Buarque celebra 'bom tempo' em primeiro show após posse de Lula, no Rio

Compositor homenageou Gal Costa e aproveitou para alfinetar Paulo Guedes e juíza que questiona autoria de 'Roda Viva'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

Na primeira apresentação carioca da turnê "Que tal um samba?", no Vivo Rio, Chico Buarque, ao lado da artista convidada Mônica Salmaso, reafirmou, de maneira ainda mais convicta, o que o show anunciava desde a estreia em João Pessoa, em setembro de 2022: uma celebração ao que se aponta ali como um "bom tempo" vindouro, "depois de tanta mutreta", "tanta cascata", "tanta demência" e "uma dor filha da puta".

Em seu repertório e cenário, o espetáculo observa a grandeza da existência brasileira: do amor em suas mil formas, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, do meio ambiente, da cultura e a da arte, e mesmo das contradições que sustentam muito disso. "Diversos açoites/ Doces lundus", como ele canta em "Bancarrota Blues".

Chico Buarque em show no Rio de Janeiro
Chico Buarque em show no Rio de Janeiro - Ricardo Nunes/Divulgação

Nesse contexto de "desafogo" e "devaneio", Chico lembrou Gal Costa e Miúcha, —irmã do artista, morta em 2018— e espetou Paulo Guedes e a juíza Monica Ribeiro Teixeira, que recentemente questionou que ele fosse autor de "Roda viva". E, com Salmaso, cantou com vontade o verso-exortação de "Maninha": "Um dia ele vai embora, maninha/ Para nunca mais voltar".

O show foi o primeiro da turnê depois da posse de Luiz Inácio Lula da Sila, do PT, de quem Chico é um apoiador histórico. O roteiro deixa evidente a afinidade entre o país defendido pelo presidente e o exposto nas canções do compositor. A noite começou às 21h57, com Salmaso no palco, cantando sozinha a infanto-revolucionária "Todos Juntos", do repertório de "Saltimbancos". "Todos juntos somos fortes/ Somos flecha e somos arco/ Todos nós no mesmo barco/ Não há nada pra temer", diz a letra. O princípio da democracia, enfim.

Chico Buarque  e Mônica Salmaso em show no Rio de Janeiro
Chico Buarque e Mônica Salmaso em show no Rio de Janeiro - Ricardo Nunes/Divulgação

Antes de Chico subir ao palco, Salmaso passeia por canções que tratam do amor entre duas mulheres, com fim trágico devido ao preconceito, caso de "Mar e Lua", ou que visam das ameaças ao meio ambiente ou, pela metáfora, aos que trazem beleza ao mundo, com "Passaredo". Com "Beatriz", Salmaso celebrou o artista. A cantora também anuncia: "O pescador me confirmou/ Que o passarinho lhe cantou/ Que vem aí bom tempo", diz a canção "Bom Tempo".

Em "Paratodos", louvor à música popular brasileira, Chico finalmente apareceu no palco. Entrou para cantar: "Vou na estrada muitos anos/ Sou um artista brasileiro".

A canção é senha para o cruzamento dessa trajetória pessoal com a história mais larga do país. Chico é o "cantor atormentado/ Herdeiro sarará" que testemunha a violência que corta de várias formas o processo de miscigenação brasileiro —como retratado em "Sinhá", parceria sua com João Bosco.

É, aos 78 anos, um "velho Francisco" de vivências acumuladas, como o personagem de sua canção. Vai fundo no mais pessoal, na paternidade, ao cantar as filhas em "As Minhas Meninas", para logo depois, com o auxílio preciso e belo de Salmaso, expor outra experiência, na maternidade amarga de "Uma Canção Desnaturada".

Seu Rio de Janeiro é lembrado em "Dois Irmãos" e "Futuros Amantes", em sequência, apontando para o eterno além da cidade. A capital fluminense aparece também como triste cenário do horror racista de "As Caravanas".

A banda que acompanha Chico e Salmaso é formada por Luiz Claudio Ramos, responsável pelos arranjos, guitarra e violão, João Rebouças, no piano, Jorge Helder, no baixo acústico e elétrico, Jurim Moreira, na bateria, Chico Batera, na percussão, Bia Paes Leme, nos teclados e vocais, e Marcelo Bernardes nos sopros.

Nos arranjos, que têm como referência os originais, a busca pela beleza é o efeito expressivo maior —ora explorando toda a banda, ora em formações menores, como "Beatriz", feita em piano e violão. Há espaço para outras texturas sonoras no tecido do show. Bia assume o triângulo de "Tipo um Baião" e Marcelo Bernardes se posta ao lado de Chico Batera, ambos tocando atabaques, em "Sinhá" —com forte efeito sonoro e cênico.

Salmaso usa a voz com o rigor e expressividade musical de instrumentista —seu diálogo com os sopros de Marcelo Bernardes em "Passaredo" atesta isso. O repertório aproveita inteligentemente músicas feitas para duas vozes, na qual a cantora rende tanto no terreno do lirismo, caso de "Imagina", de Chico com Tom Jobim, ou "Sem fantasia", como no da malícia, em "Biscate".

Cenicamente, o show tem a mesma frequência emocional, política e filosófica das canções. Com duas paredes de canhões nas laterais, a iluminação de Maneco Quinderé, como os arranjos instrumentais, prende-se à tarefa de realçar a beleza da música que se faz ali.

O cenário de Daniela Thomas apresenta projeções de fotos de 19 fotógrafos brasileiros da fauna, da flora e, sobretudo do povo brasileiro em situações de festa e luta. Uma continuação da carga simbólica da diversidade que subiu a rampa do Planalto no dia 1º de janeiro.

O compositor fez uma homenagem a Gal Costa com "Mil Perdões", canção sua gravada pela baiana em 1983. Enquanto cantava, uma foto da cantora era projetada ao fundo do cenário. A plateia reagiu com palmas assim que viu a imagem, e aplaudiu efusivamente ao fim da música.

Chico Buarque faz homenagem a Gal Costa, morta ano passado, durante show no Rio de Janeiro
Chico Buarque faz homenagem a Gal Costa, morta ano passado, durante show no Rio de Janeiro - Folhapress

O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, também foi lembrado, em "Assentamento", que Chico compôs na década de 1990 para o movimento. A canção tem versos como: "Quando eu morrer/ Cansado de guerra/ Morro de bem/ Com a minha terra/ Cana, caqui/ Inhame, abóbora/ Onde só vento se semeava outrora".

Na reta final do espetáculo, Chico fez piada com a recente sentença da juíza que questionou que "Roda Viva" fosse uma canção sua. O compositor pedia na Justiça que Eduardo Bolsonaro removesse uma postagem na qual usava a música, além de pagar uma indenização por danos morais.

"Com instrumentistas desse naipe eu tenho que caprichar é muito meu violãozinho", disse Chico, logo depois de apresentar a banda sobre a base instrumental de "Bancarrota Blues". Ele continuou: "Posso ratear, esquecer uma parte de uma letra. Pensei em instalar um teleprompter. Mas aí podem dizer, se eu não sei as letras, não sei tocar, que eu não sou o autor: 'Prova que é sua?'". A plateia riu.

Em seguida, lembrou a história que circulou nas redes de direita dizendo que ele comprava suas músicas. Depois de afirmar que não admitia a acusação de que comprava músicas, cantou "mas posso vender", retomando a letra de "Bancarrota Blues".

Ao fim da canção, que tem como mote exatamente o verso "mas posso vender", que se repete ao longo de toda a letra, ele arrematou: "Essa também não é minha. É do Paulo Guedes".

Depois de se despedirem com "Que Tal um Samba?", canção que dá título ao show e resume sua alma solar, Chico e Salmaso voltaram ao palco para o bis sob o coro da plateia de "Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula". Chico fez o L com os dedos e dedicou "Maninha", que cantaria a seguir, à sua irmã Miúcha: "que se estivesse aqui estaria fazendo o L também".

"João e Maria" encerrou o show, em mais um belo dueto de Salmaso e Chico. Uma canção de caráter infantil, como a "Todos Juntos" da abertura. O futuro, portanto, como princípio e fim do show. Um futuro do qual as canções do Chico certamente não darão conta, mas que não se pode dar ao luxo de dispensá-las. Sobretudo porque seguem carregando mais perguntas do que respostas. "Que Tal um Samba?", por exemplo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.