Entenda briga de Chico Buarque e Eduardo Bolsonaro sobre 'Roda Viva'

Advogados do cantor querem entrar com novo processo após juíza ter afirmado que falta comprovação da autoria da música

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Rio de Janeiro

"Roda mundo, roda-gigante/ roda moinho, roda pião/ o tempo rodou num instante/ nas voltas do meu coração." Qualquer brasileiro com memória musical reconhece o compositor Chico Buarque como autor dos versos de "Roda Viva". No entanto, em recente sentença, uma juíza fluminense exigiu a comprovação da autoria havida como notória da canção de 1967.

O compositor Chico Buarque - Divulgação

Um post com fotos de expoentes da extrema direita no país, como os jornalistas Augusto Nunes e Guilherme Fiuza, o empresário Luciano Hang, a deputada federal Carla Zambelli, o deputado recém-eleito Nikolas Ferreira e Eduardo Bolsonaro, pôs "Roda Viva" na trilha musical de sua denúncia contra a "censura" do ministro do Supremo Tribunal Federal, o STF, Alexandre de Moraes, à frente do inquérito das fake news. O nome de Moraes não foi citado.

"O Brasil está sob censura. Numa ditadura a primeira a morrer é a liberdade de expressão e imprensa", disse o deputado federal e filho do presidente da República, em 5 de novembro.

Ouvida pelo avesso, a canção-símbolo da resistência cultural à ditadura militar virou arma de protesto de apologistas do regime autoritário iniciado em 1964. Terceiro lugar no terceiro Festival de Música Popular Brasileira, em 1967, e incluída no álbum "Chico Buarque de Hollanda – Volume 3", de 1968, "Roda Viva" tem uma das letras mais virtuosas do compositor e conta com arranjo vocal de Magro Waghabi, do grupo MPB-4.

Ela virou ainda tema da peça escrita por Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Em julho de 1968, o ataque do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, ao elenco do "Roda Viva", no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, marcou o terror cultural à beira do Ato Institucional Nº 5, o AI-5.

Indignado com o uso indevido, Chico pediu a retirada da música do post e uma indenização por danos morais no valor de R$ 48 mil. "Se ver posando de garoto-propaganda de uma campanha política da qual é veementemente contrário e que, diga-se, lhe impingiu o exílio, tem sido muito doloroso para ele", afirmou a petição inicial dos advogados, em 17 de novembro.

Um dia depois, a juíza substituta do sexto Juizado Especial Cível da Comarca da Capital Lagoa, Mônica Ribeiro Teixeira, apontou a ausência de "documento hábil a comprovar os direitos autorais do requerente sobre a canção ‘Roda Viva’".

Sem julgar o mérito, ela não negou a autoria da canção, mas exigiu que fosse atestada. "Após o trânsito em julgado, dê-se baixa e arquive-se." A decisão motivou críticas em redes sociais de personalidades políticas e artísticas.

No pedido de reconsideração da sentença, em 23 de novembro, os advogados de Chico apontaram "omissões e obscuridades" da juíza. "Em se tratando de direitos autorais não há que se falar na necessidade de apresentação de registro para que se pleiteie a sua proteção em qualquer esfera." Amparados no Código de Processo Civil, argumentaram que quando a autoria é um "fato público e notório" não exige comprovação específica.

"Trata-se de uma das músicas mais marcantes da cultura popular brasileira e da história das canções de protesto", reforçou a defesa, citando questões de vestibular e o próprio post de Eduardo Bolsonaro, que atribuiu o fonograma a Chico Buarque.

Mônica Teixeira não recuou após a repercussão negativa. Em 29 de novembro, se manifestou com aridez. "A sentença embargada não apresenta obscuridade, contradição, omissão ou dúvida", declarou a juíza. "Assim, conheço os embargos e não lhes dou provimento."

Teixeira não rebateu as críticas à decisão polêmica. "O juiz não pode manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo em tramitação. A vedação está prevista na Lei Orgânica daMagistratura Nacional", informa a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

"Tem gente que não quer dar o braço a torcer. Seria grandeza dela dizer que a música é do Chico. ‘Reconsidero a minha decisão.’ Mas ela não teve essa modéstia. Os grandes juízes fazem isso com facilidade, porque o humano erra", afirma o advogado do compositor, João Tancredo.

Chico Buarque, então com 23 anos, durante ensaio de "Roda Viva", em 1968
Chico Buarque, então com 23 anos, durante ensaio de 'Roda Viva', em 1968 - Acervo Teatro Oficina

A defesa vai ingressar com um novo processo, porque a juíza não entrou no mérito, e deseja ver o pedido atendido em um tempo mais célere. "Não estou reclamando direito material. Não é direito autoral pela execução. Estou reclamando dano moral pelo uso da ‘minha voz, da minha obra’ em uma coisa que eu não autorizei."

A sentença levantou dúvidas sobre a posição ideológica e a formação cultural da magistrada. "É uma coisa tão fora de qualquer lógica. Isso é ilegal", critica Zé Celso Martinez, diretor das montagens de "Roda Viva" em 1968 e 2018. "Ela está mentindo, fazendo uma grande fake news. Tem que entrar em cena o Alexandre de Moraes para resolver essa questão surreal".

Por telefone, Zé Celso pediu que o repórter repetisse o nome da juíza. "Mônica Teixeira! Pô, qualé, pirou? Virou a deusa da fake news? Não dá! Isso é o óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues", disse o diretor do Teatro Oficina. "Posso ser testemunha em qualquer situação. Só o ministro Xandão pode fazer alguma coisa. É pior do que a ameaça de golpe militar. É uma ode à fake news".

"Roda Viva", a peça que incorporou a canção, aborda a história de um ídolo popular, Ben Silver, tragado pela engrenagem da sociedade de consumo. "Ela teve problemas de censura e ataques às mulheres no teatro, inclusive Marília Pêra. Tenho esses documentos da peça do Chico. Os censores foram ver os ensaios. Chico estava presente. Ninguém olhou para a peça. Chico era muito jovem e lindo. Ficaram todos olhando para os olhos do Chico", lembra Zé Celso.

O cantor Miltinho, membro do MPB-4, também se espantou com a decisão judicial. "Quando eu vi a notícia achei graça. Mas não tem graça. É ridículo", diz o artista, que participou da defesa de "Roda Viva" no festival de 1967. "É como dizer que Ary Barroso não fez ‘Aquarela do Brasil’. Ele disse que fez? Então prove".

O intérprete menciona o uso amalucado de "Cálice", de Chico Buarque e Gilberto Gil, em um vídeo antidemocrático de bolsonaristas. Ele alertou a Vinicius França, empresário de Chico, sobre a distorção do sentido da música, outra marcante presença vocal do MPB-4.

"Acho que a gente nunca deixou de tocar ‘Roda Vida’ em nenhum show. ‘Roda Vida’ faz parte da vida do MPB-4. Normalmente, ela encerra o show. Tem uma mensagem que não para nunca. Você pode pegar pelo viés político, social, de vida, qualquer um. É um hino", acrescenta Miltinho.

No trecho de "Roda Viva" levado ao post de Eduardo Bolsonaro, ainda no ar, o MPB-4 canta "a gente vai contra a corrente/ até não poder resistir".

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