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Príncipe Harry posa de pobre menino rico em livro pouco cativante

Ataques à família real se misturam com memórias de juventude na obra sem objetivo claro, com ecos de Lady Di

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Washington

Em uma das passagens mais citadas de "O Pequeno Príncipe", de Antoine de Saint-Exupéry, uma raposinha sugere que uma pessoa é responsável por aquilo que ela cativa. O duro é que o príncipe Harry do Reino Unido, de 38 anos, não tem cativado muita gente.

A publicação de seu livro de memórias "O que Sobra", nas livrarias nesta terça-feira (10), é mais uma tentativa de comover com a tragédia de um pobre garoto rico. Mas é improvável que o leitor —que não nasceu em uma poderosa família real— se emocione muito.

Não que a história não tenha passagens tristíssimas —incluindo a morte de sua mãe, Diana, quando Harry tinha apenas 12 anos, e a posterior sensacionalização de seu luto.

Capa da versão em inglês do livro "O que Sobra", do príncipe Harry
Capa da versão em inglês do livro "O que Sobra" - Isabel Infantes/AFP

É só que o elemento organizador do livro é a ideia de que Harry sofreu por ser sempre uma peça de reposição, um reserva. Ele é hoje o quinto na linha de sucessão, depois de seu irmão mais velho, William. O título original, "Spare", deixa isso claro. É um aceno à frase que diz "the heir and the spare". Ou seja: "o herdeiro e o que sobra".

O livro chegou ao Brasil pela Objetiva no mesmo dia do restante do globo. A ideia era um lançamento mundial. A obra foi vendida por acidente na Espanha há alguns dias, porém, e os principais trechos já vazaram na imprensa. Perdeu um pouco a graça.

A ironia de tudo isso é que mesmo chegando velho às estantes, e mesmo com tanta má-vontade em relação ao príncipe Harry, "O que Sobra" vai vender horrores. No momento da escrita desta resenha, o livro já estava em terceiro lugar na Amazon brasileira na categoria "memórias". O segundo era "O Príncipe", de Maquiavel.

Culpem, se quiserem, a indústria cultural, descrita por Theodor Adorno e Max Horkheimer em um clássico da teoria da comunicação. Tudo vira um bem cultural, na esteira de produção. Mas o fato é que há um apetite voraz —provado inclusive pela publicação deste texto— por um sem-fim de fatos sobre a família real britânica.

Polêmico, Harry segue os passos da sua mãe, Diana, que causou furor ao se separar do então príncipe Charles, hoje rei. Harry foi além e se divorciou da família inteira. Afastando-se do palácio, mudou-se para os Estados Unidos com sua mulher, Meghan Markle, em 2020. Abriram mão das funções reais. No livro, ele descreve o êxodo como um modo de preservar a "sanidade e integridade física" do casal.

Harry justifica o livro em si como uma oportunidade de dar a sua versão da história toda. Mas é o que ele tem feito há anos, em entrevistas. O príncipe ruivo acaba de lançar o documentário "Harry & Meghan" na Netflix, com seis horas de ataques à família, ampliadas agora no livro.

Diana é quase a protagonista da obra, como não poderia deixar de ser. Harry dedica o texto a ela. Já no primeiro capítulo, ele conta como soube da morte da mãe. Mais triste ainda, fala de como pensou por bastante tempo que Diana estava fingindo seu falecimento. Harry desconfiou mesmo depois de receber, de herança, uma mecha de cabelo cortada do cadáver de sua mãe, que morreu em Paris em agosto de 1997.

Entre os trechos que mais chamam a atenção —e já vazados e destrinchados nos últimos dias— está o relato de que Harry matou 25 pessoas no Afeganistão durante seu serviço militar. A revelação é descuidada, incômoda e de um risco desnecessário. A organização radical Talibã já veio a público condenar o príncipe.

Outro relato marcante é o de que seu irmão, William, bateu nele. Segundo Harry, a briga aconteceu em 2019 dentro de sua residência no Palácio de Kensington. William chamou Meghan, mulher do príncipe, de "difícil" e "rude". Na versão do livro, William empurrou Harry, que caiu em cima da tigela de seus cães. O detalhe do potinho de comida, rompido na queda, é um detalhe meio inesperado e patético.

Harry culpa também o irmão, a quem chama de "arqui-inimigo", por aquele que é seu episódio mais controverso: a decisão de se vestir de nazista em 2005. Segundo o livro, William e Kate Middleton, sua então namorada, apoiaram a escolha da fantasia.

Há ainda revelações de menor impacto, mas com algum sabor, como a história de que Harry perdeu a virgindade com uma mulher mais velha aos 17 anos atrás de um pub. O príncipe conta também que usou cocaína quando tinha essa mesma idade.

Sobre o Brasil, há um caso insosso. Harry conta que jogava polo no país para angariar fundos para uma ONG quando viu um jogador cair. "Saltei do cavalo, corri até o cara e puxei sua língua para fora. O homem tossiu, voltou a respirar", ele diz, herói da própria história.

O texto é um pouco piegas. Já nas primeiras páginas, Harry diz que "o céu estava cinza, mas as tulipas brotavam" e que "a luz era pálida, mas o lago cor de anil, que serpenteava pelos jardins, reluzia". Mas há lampejos de criatividade, como o trecho em que Harry diz que uma colina na Escócia tinha sido "mordiscada por cervos". Mais adiante, ele sugere que as perninhas de um beija-flor eram finas como cílios.

Há também alguma mordacidade principesca, que talvez seja acidental. Ao descrever seu irmão, por exemplo, Harry menciona sua "calvície alarmante", que, exceto por uma convicção estética, não deveria alarmar um príncipe tanto assim.

O livro se enriquece, em especial, com os detalhes inusitados que ajudam a imaginar a vida de um príncipe entre todos os seus privilégios luminosos e dúvidas sombrias. É uma vida que poucos têm.

Harry conta, de repente, que seu pai, Charles, ficava de ponta cabeça vestindo uma cueca samba-canção para aliviar as dores crônicas nas costas. Ele conta, também, que na sua escola os alunos circuncidados eram apelidados de "cabeças redondas" e que as matronas lavavam os meninos "de forma lenta e voluptuosa". Harry narra ainda, e de maneira voluntária, como seu pênis congelou em uma viagem no polo Norte.

Não fica claro, durante as mais de 500 páginas, qual é o objetivo do livro. Reconectar-se com o pai e o irmão, talvez. Mas as críticas de Harry só dificultam isso. Da madrasta Camilla, ele sugere inclusive que sempre quis o trono, uma dura acusação. Quiçá o príncipe queira reformar a monarquia. Só que acaba minando a instituição, descrevendo-a como elitista e racista, constituída por pessoas frias e sem empatia.

Essas contradições podem ser a chave de leitura, no final das contas. O que resta para Harry é encontrar uma maneira de navegar sua identidade –já não de peça de reposição, e sim de príncipe sem principado.

O que Sobra

  • Preço R$ 74,90 (512 págs.)
  • Autor Príncipe Harry
  • Editora Objetiva
  • Tradução Cássio de Arantes Leite, Débora Landsberg, Denise Bottmann e Renato Marques
Erramos: o texto foi alterado

O príncipe Harry não é o segundo na linha de sucessão do trono da família real britânica, mas sim o quinto.

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