Exposição traz os orixás que Abdias Nascimento pintou no seu exílio em Nova York

Nova mostra em Inhotim, a terceira a recuperar o projeto do Museu de Arte Negra, apresenta período fértil do artista

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Abdias Nascimento, O Vale de Exu. Nova Iorque, EUA, 1969. Crédito: Museu de Arte Negra/Ipeafro Acrílico sobre tela, 80 x 127 cm

Detalhe de 'O Vale de Exu', pintura com tinta acrílica de Abdias Nascimento feita em Nova York, em 1969 Museu de Arte Negra/Ipeafro

Brumadinho (MG)

Em uma pintura de Abdias Nascimento exposta agora em Inhotim, uma mulher negra dança ao vento segurando uma máscara na mão direita, enquanto carrega na dobra do braço uma argola da qual saem flores. Ao lado, um outro quadro mostra o desenho do busto avantajado e do rosto de uma pessoa preta, do nariz de quem desponta uma estrutura de tridentes em direção ao céu.

A representação destes dois orixás —Iansã, a deusa dos raios e da tempestade, e Oxum, a deusa dos rios—, bem como a incorporação, na segunda pintura, do tridente de Exu, são exemplos de elementos centrais na nova exposição do museu de Brumadinho dedicada à obra de Abdias Nascimento.

Abdias Nascimento, Oxum em Êxtase. Búfalo, EUA, 1975. Crédito: Museu de Arte Negra/Ipeafro Acrílica sobre tela, 153 x 102 cm
'Oxum em Êxtase', acrílica sobre tela de Abdias Nascimento pintada em 1975 - Museu de Arte Negra/Ipeafro

"Terceiro Ato: Sortilégio", aberta no sábado (18), apresenta o começo e o posterior desenvolvimento da produção pictórica de Abdias ligada às tradições afrodiaspóricas. No trabalho deste nome central do movimento negro brasileiro nas artes e na política, as divindades da umbanda e do candomblé são pintadas em cores fortes, em todo o seu esplendor.

Era fundamental resgatar a importância que o pintor dava às religiões de matriz africana, tratando estes cultos como entidades organizadoras da vida e da sociedade, diz Douglas de Freitas, um dos organizadores da mostra.

"Os orixás são as forças. Iansã é o vento, Oxum é a água do rio, Oxóssi é a mata. Abdias dizia que esses deuses estão vivos. Se você está na rua e sente um vento, não é um vento, é Iansã que está passando por você. É uma maneira de pensar a vida, não uma religião que você entra num templo, ora e se encerra", ele afirma.

A exposição é a penúltima de um ciclo em Inhotim dedicado a resgatar o projeto do Museu de Arte Negra, criado por Abdias na década de 1950. Trata-se de uma instituição sem sede física mas que guarda um acervo de pinturas, desenhos, gravuras, fotografias e esculturas de artistas negros.

"Terceiro Ato: Sortilégio" compreende o período de 1968 a 1981, quando Abdias ficou exilado em Nova York, cidade para a qual se mudou por ter recebido uma bolsa de estudos e na qual permaneceu para se proteger de uma possível perseguição da ditadura no Brasil.

Este período foi um dos mais férteis na carreira do artista, quando ele produziu boa parte de sua obra. Segundo o organizador, Abdias dizia que não ia aprender inglês para não ser colonizado, e portanto via na pintura uma forma de comunicação para substituir a fala que ele não tinha por conta da diferença da língua.

No museu, o público vê mais de 180 trabalhos, a maioria pinturas de Abdias, mas há também obras de artistas de suas duas redes, uma formada por criadores negros que o influenciaram, como Mestre Didi, Rubem Valentim, Emanoel Araújo e Melvin Edwars, e outra composta por colegas brasileiros que também moravam em Nova York naquela época, a exemplo de Anna Bella Geiger, Hélio Oiticica e Regina Vater.

Um dos destaques da exposição fica já na entrada. Logo atrás de uma foto preto e branca de Abdias com cara de bravo, segurando um tridente, há um conjunto de pinturas dedicadas a Exu, o orixá da comunicação, presente em muitas obras do artista. Neste núcleo está também a única pombagira pintada por ele de que se tem notícia.

Fora do universo religioso, a exposição traz um lado menos conhecido e menos ativista do artista —uma série de pinturas de paisagens de Nova York e de Buffalo, cidade onde deu aula numa universidade sobre cultura negra dos países das Américas. Suas representações das ruas da metrópole e das casas de tijolos do interior têm um aspecto tranquilo que não se repete quando pinta temas do universo negro.

Outro núcleo mostra a dedicação do pintor aos "adincras", um antigo sistema de escrita africano composto por ideogramas, cada um com seu significado. Abdias não só sistematizou num documento as dezenas de símbolos conhecidos como pintou a partir deles, como por exemplo num quadro com a estilização do "sankofa", um pássaro olhando para trás que quer dizer observar o passado para poder construir o futuro.

Abdias Nascimento durante apresentação da peça Sortilégio, 1957. Fotografia de José Medeiros
Abdias Nascimento durante apresentação da peça 'Sortilégio', em 1957 - José Medeiros

"O Ocidente sempre negava que a África tivesse escrita porque a escrita na África é diferente da escrita no Ocidente. O Ocidente julga que a única forma de escrita que é mesmo escrita é a fonética, em que cada letra corresponde ao som", diz Elisa Larkin, viúva de Abdias e fundadora, junto com ele, do Ipeafro, o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, responsável pelo acervo do Museu de Arte Negra.

Segundo Larkin, Abdias não considerava sua obra como arte pela arte, para ser exposta num museu a ser visitado por pessoas ricas. Quando era vivo, ele sofria quando tinha de vender um quadro, pois acreditava que sua produção precisava ficar para o povo negro. Neste sentido, esta exposição vem em benefício de uma população que sofre racismo e opressão há séculos, diz ela.

Além de artista, Abdias foi escritor, professor e senador, numa vida integralmente dedicada à luta contra a opressão do negro na sociedade civil. A realização do Museu de Arte Negra depois de sua morte, em 2011, é uma prova de seu legado. Mas talvez ele achasse pouco. Para sua viúva, "provavelmente ele sentia que o que ele conseguiu fazer pelo povo negro foi muito menos do que o que precisava ser feito".

Abdias Nascimento - Terceiro Ato: Sortilégio

  • Quando Qua. à sex., das 9h30 às 16h30; sáb., dom. e feriados, das 9h30 às 17h30. Até 6 de agosto
  • Onde Inhotim - Brumadinho, MG
  • Preço R$ 50

O jornalista viajou a convite de Inhotim.

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