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'Saudade Não Viaja Bem' trata de culpa e vergonha por aborto de herdeira

Trama de estreia de Lu Lacerda entrecorta confissão com lembranças de uma genealogia de mulheres

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Luciana Araujo Marques

Saudade Não Viaja Bem

  • Preço R$ 49,90 (208 págs.)
  • Autoria Lu Lacerda
  • Editora Record

Maria Clara, protagonista de "Saudade Não Viaja Bem", é uma herdeira. Filha de fazendeiro na Bahia, ela pouco trata dos fatores econômicos que regem o sustento de sua vida.

E ainda que certo prejuízo financeiro causado em tempos de seca não passe despercebido, a principal dívida legada à narradora do romance de estreia de Lu Lacerda é a vulnerabilidade imaterial de quem reconhece não ser dona da própria vida.

mulher sorri e cruza braços em foto em preto e branco
A escritora Lu Lacerda, autora do romance com 'Saudade Não Viaja Bem' - Bruno Ryfer/Divulgação

Assim, ter acesso e poder pagar por um aborto seguro não é o problema, mas reconhecer que ele aconteceu à revelia de seu desejo custa muito caro. "Eu grávida e sem poder ter o filho. Quando meu namorado foi me buscar, muito cedo ainda, me deixei levar."

Esse episódio traumático que se inscreve no corpo de modo irreversível dispara recordações e buscas por uma genealogia. Na forma do romance, o que temos é uma série de capítulos curtos que, entrecortados pelo tom de confissão de quem carrega consigo um segredo, trazem à tona histórias e ditos de avós, bisavós e tias da protagonista, mas sobretudo a figura da mãe, Maria Rosa, e as consequências de seu alcoolismo.

"Eu era ‘filha de uma mulher que bebe’, como já tinha ouvido da professora de inglês. Me deitava numa parte alta do gramado, disfarçando que ficar sozinha era por gosto." O vício, a propósito, retornará tanto hereditário quanto desestabilizador na história de Maria Clara ao final do livro.

É como se a interrupção da gravidez para atender à vontade do namorado, e não a sua própria, disparasse na narradora a necessidade de outras gestações. Dar vida por meio da memória a todos aqueles e aquelas de quem ela teria herdado a fragilidade e a solidão como sina, além de reconhecer o impacto de certas mortes sobre a família e desta na formação de interioridades. "Numa manhã, minha irmã mais nova entrou ali e perguntou: ‘mãe, se você ficar aqui olhando os santos, eles vão trazer o meu irmão de volta?'."

Primeiro, a saída da fazenda para estudar na cidade mais próxima marca o final da infância de Maria Clara e certa ilusão de idílio, a recalcar os significados de ser filha daqueles que detém a posse da terra. Anos depois, a migração para o Rio de Janeiro para cursar faculdade surge nessas páginas como os pássaros e frutos na paisagem rural onde se cresceu —nada mais natural, sem qualquer peso de uma conquista especial.

Não à toa, o famoso "o que vai ser quando crescer" não surge como questão nem é relevante no enredo. "‘Minha filha vai estudar fora.’ E o homem: ‘Vai estudar pra ser o quê?'. Ficou sem resposta." Indefinição que, por outro lado, carrega em si uma possibilidade de autonomia e liberdade. "Achei bom que nenhum de nós soubesse o que eu seria."

Já a imposição de ir para fora como destino imposto à Maria Clara espelha por oposição o barrado à mãe. "‘Ah, se eu pudesse partir pra esse mundão’, minha mãe dizia de vez em quando. Então eu perguntava do que ela estava se lembrando: ‘Dos meus sonhos; vou pensar no quê, aqui no meio do mato, em boi e criança berrando?'." Mais adiante a narradora constata que a natureza ampla da propriedade era, para a sua mãe, uma verdadeira prisão.

"Eu ia do aborto à infância, da infância ao aborto." Movimento esse que cria não apenas uma relação entretempos, no romance, mas também uma noção desalojadora de entrelugar. "Na fazenda, eu era da cidade; na cidade, eu era da fazenda."

São vãos que "Saudade Não Viaja Bem" não busca preencher ao tratar de culpa, remorso e vergonha, ainda que sem escancarar os contornos de certos privilégios de classe no interior de uma história bem brasileira.

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