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'O Circo Voltou' é prova de documentário de esquerda sem tolice

Tema do longa sobre artista Zé Wilson é a permanência de um modo de vida num mundo que o rejeita

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O Circo Voltou

Apesar do título, apesar da paixão que os realizadores manifestam pela trupe que acompanham, "O Circo Voltou" não é um filme sobre um circo, nem mesmo sobre seus artistas. Este é mais o motivo do documentário dirigido por Paulo Caldas.

Seu tema verdadeiro é a permanência de um modo de vida, num mundo que o rejeita ou despreza. O modo de vida dos circenses, em primeiro lugar. Nos acostumamos, nós, gente da cidade, a ver nesses nômades uma espécie de fantasmas de um mundo já extinto. Talvez não estejamos longe da verdade.

Cena do documentário 'O Circo Voltou', de Paulo Caldas
Cena do documentário 'O Circo Voltou', de Paulo Caldas - Fred Jordão/Divulgação

O circo acabou. Existem ainda essas grandes trupes, o Cirque du Soleil e tal. Mas aquela gente que saía pelo interior, armando as suas tendas, já não faz mais parte do nosso mundo, embora ainda frequentem nosso imaginário.

Pois bem —para o pessoal do Circo Spadoni as coisas não são bem assim. O circo ainda é um lugar "onde tudo pode acontecer", como deixa bem claro o narrador do documentário. Tudo o que? É o lugar onde se encontram acrobatas, mágicos, palhaços, trapezistas, malabaristas e até os motociclistas do globo da morte.

É, em suma, o lugar onde o extraordinário se manifesta. Não é o cinema com seus mil truques. O circo restitui a presença de um mundo mágico, fantástico. Carrega consigo um fiapo de cultura popular, esta que não foi contaminada pela cultura de massas, que sobrevive nessas cidadezinhas de uma rua ou duas.

Este é o mundo do Spadoni, cuja viagem restitui a variedade e a beleza da paisagem brasileira. Aqui é Minas Gerais, com mata e montanha, agora já é Bahia, a vegetação muda, a seca se insinua, até um cacto aparece. A mãe explica tudo isso ao filho durante a viagem.

Paulo Caldas tem uma sensibilidade particular para captar as paisagens. Uma rua, um carro passando, uma igreja ao fundo bastam para compor uma imagem cheia de significados. Esses significados remetem, justamente, ao começo da história —o circo, o nomadismo, a transformação e a permanência.

Para notar a transformação, basta ver as primeiras imagens de uma São Paulo tomada de viadutos e edifícios, passando para a estrada, o borracheiro, os quiosques. Tudo se move, como o circo, cuja forma passa dos caminhões e trailers para a montagem da lona, a maquiagem, os adereços. Parece que a paisagem afeta o circo, que por fim afeta a paisagem.

A permanência —esse talvez seja o aspecto mais misterioso do filme. Porque a trupe faz duas paradas antes de chegar a Major Isidoro, a terra onde nasceu o mestre José Wilson, o dono do circo. A primeira delas é em uma comunidade quilombola, negra.

A segunda é em uma tribo indígena. Dois grupos que o governo passado não via com bons olhos —os negros—, ou talvez preferisse ver extinta —os indígenas. Ambas, no entanto, resistem, perseveram e sobrevivem. Mal, mas sobrevivem. Como os circenses.

Porque, pensando bem, "O Circo Voltou" é um documentário sobre a arte da resistência às adversidades. E uma prova de que se pode fazer documentários à esquerda e sem fazer uma tolice.

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