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Bienal de Arquitetura de Veneza traz cápsulas de esperança

Mostras explicitam consciência da devastação ambiental, destacando importância dos recursos naturais em construções

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Carlos Alberto Maciel
São Paulo

"Todas as mudanças, mesmo as mais desejadas, têm sua melancolia; pois o que deixamos para trás é uma parte de nós mesmos; devemos morrer para uma vida antes de podermos entrar em outra."

Com essa citação a Anatole France em uma sala iluminada com o azul do entardecer, Lesley Lokko abre a exposição do Arsenale. A citação ilumina também o que mais se vê na edição de 2023 da Bienal de Arquitetura de Veneza.

A fachada do pavilhão brasileiro com os gradis
A fachada do pavilhão brasileiro com os gradis - Gabriela de Matos e Paulo Tavares

Marcada pela consciência sobre os limites do planeta frente à devastação ambiental produzida pela predação extrativista e pela acumulação capitalista, a maioria das representações e dos convidados oscila entre mapeamentos, diagnósticos e narrativas que incidem nostálgica e melancolicamente sobre o passado mais que aportam visões de futuro.

Outro aspecto melancólico é o deslocamento do foco na ação material de criação e transformação dos espaços para vida em direção ao agenciamento de práticas sociais e intervenções efêmeras, quase como um escape aparentemente inevitável em relação às lógicas de poder dominantes, deslocando o peso da balança em direção ao software da arquitetura —os eventos— em detrimento do hardware —suas infraestruturas.

Parafraseando o filósofo Jean-Paul Sartre, o mais importante não é o que fizeram de nós, mas o que podemos fazer, aqui e agora, com o que fizeram de nós. Essa inflexão pode ser útil para compreender o princípio de algumas participações nesta bienal que apresentam cápsulas de esperança.

Alguns pavilhões discutiram os impactos ambientais das construções. Finlândia trouxe um vaso sanitário seco com compostagem; Bahrein, o reúso de água proveniente da condensação da refrigeração; Alemanha, o caráter perdulário da geração de resíduos na construção, ilustrada por um organizado estoque dos descartes provenientes da desmontagem da última bienal de arte.

Dentre esses, a singela participação da Eslovênia é notável por promover um deslocamento da discussão da tecnologia ao projeto arquitetônico, buscando revelar como disposições espaciais, tamanho e proporção dos cômodos podem sutilmente contribuir para a redução da pegada ambiental.

Água, como terra, é também tema político: várias discussões abordam o papel de rios, lagos e oceanos para a organização da vida humana em termos infraestruturais e culturais, como fazem Portugal e Dinamarca; e, claro, do lado terra, Brasil.

No campo da construção de edifícios, o reúso adaptativo de estruturas existentes, inclusive abandonadas, chama à responsabilidade quanto ao reconhecimento da obsolescência como oportunidade. Destaco a reescrita da Carta de Veneza —importante documento sobre a conservação e preservação de monumentos, de 1964— proposta pela participação da Turquia, deslocando a discussão da preservação à transformação, de monumentos a edifícios ordinários.

Além disso, há a participação do escritório chinês Neri&Hu, que apresenta, em três obras de reúso adaptativo, exemplos concretos, possíveis, consistentes e inspiradores de convivência entre tempos, sem nostalgia.

Por último, é o nosso vizinho Uruguai quem nos traz uma das mais potentes cápsulas de esperança ao revelar o potencial da Lei Florestal, criada há 35 anos, para promover uma extensa transformação de todo o território do país, que paulatinamente deixou de ser pasto para voltar a ser floresta, modificando a paisagem e a economia.

Este ano, por exemplo, a exportação de madeira e celulose ultrapassou a pecuária, apontando ainda a oportunidade de uma arquitetura de baixo impacto com a construção em madeira. Em 1951, Lúcio Costa escreveu o artigo "Muita construção, alguma arquitetura e um milagre", apresentando os feitos de vários arquitetos modernos e destacando uma convergência singular: a revelação do talento individual de Oscar Niemeyer na primeira grande realização moderna brasileira, o edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública —atual palácio Capanema—, no Rio de Janeiro.

Passados 72 anos, a Bienal de Arquitetura de Veneza traz muita melancolia, alguma esperança e uma grande notícia: a arquitetura brasileira tem a grata alegria de ver novamente essa convergência. Desta vez, menos milagre e mais revelação; menos autoral e mais amparada pela colaboração e pela construção coletiva, com o encontro entre os talentos e as visões críticas dos curadores, a temática da bienal —de forte sentido decolonial e foco no sul global— e o importante momento de reconstrução de políticas públicas em um Brasil devastado.

A valorização da ancestralidade afro-brasileira que traz a curadora Gabriela de Matos e a ação política, crítica e prospectiva na defesa de direitos dos povos originários de Paulo Tavares apontam para a construção de outros futuros.

A reparação histórica imprescindível após séculos de genocídio negro e indígena, o reconhecimento de territórios e arquiteturas de todas e de todos, e a valorização de práticas coletivas, sociais e ambientais mais justas e capazes de induzir transformações positivas são passos fundamentais para que nós, como país, possamos, como sugeriu a curadora geral, superar os vícios da vida antiga e nascer renovados, quem sabe como um estado plurinacional, ecológico e inclusivo.

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