Como inteligência artificial, que reviveu Elis Regina, pode mudar o futuro da música

Entre comerciais, covers e parceiras falsas, como a de Drake e The Weeknd, ferramentas inflamam debates éticos e jurídicos

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Amanda Cavalcanti
São Paulo

Elis Regina, morta há 41 anos, está viva. Ao menos para o comercial da Volkswagen recém-lançado, em que a cantora canta "Como Nossos Pais" enquanto dirige com sua filha, Maria Rita. A propaganda trouxe sua imagem e voz de volta à vida a partir de técnicas de inteligência artificial.

A imagem mostra duas mulheres sorridentes na direção de veículos
As cantoras Maria Rita e Elis Regina no filme publicitário - Divulgação/Volkswagen

Elis não é a única que se tornou alvo da inteligência artificial. O uso de tecnologias como emulação de vozes e deepfakes inunda as redes sociais com memes e covers inusitados, além de despertar discussões acaloradas sobre as implicações éticas e jurídicas das ferramentas.

Alguns covers deram o que falar, como a de Ariana Grande cantando "No Dia em Que Eu Saí de Casa" e o de Renato Russo entoando "Batom de Cereja", da dupla Israel & Rodolffo. Nenhuma, porém, chamou tanta atenção quanto "Heart on My Sleeve".

É que a faixa foi lançada em abril como uma colaboração real entre Drake e The Weeknd, mas foi criada a partir de computadores. A tarefa não é tão difícil. Sites como Covers.ai, por exemplo, solicitam somente o upload do arquivo da música alvo e gravações da voz escolhida para fazer a mixagem.

"É importante destacar que a inteligência artificial ainda não cria no stricto sensu da palavra –a partir do nada–, mas manipula, reconhece padrões e os recombina de maneira cada vez mais eficiente", diz o compositor Alex Buck, mestre em música da Unesp, da Universidade Estadual Paulista.

Para além de piadistas de redes sociais e publicitários, a tecnologia já é usada por artistas como uma maneira de experimentação. É o caso do trio americano Yacht, que decidiu usar ainda em 2016 inteligência artificial para compor seu sétimo álbum, "Chain-Tripping" —nome que também foi escolhido pela tecnologia. O disco, lançado em 2019, foi indicado a um Grammy.

Como documentado no filme "The Computer Accent", lançado no ano retrasado, a banda usou programas ainda não disponíveis ao público para criar padrões de melodia e ritmo e, assim, escrever a composição melódica, que foi gravada com instrumentos analógicos e voz humana.

O filme também mostrar que criar música no computador não é algo novo. Ele recupera a trajetória do compositor americano David Cope, que no início dos anos 1990 criou um programa que encontrava e recombinava padrões em obras de Johann Sebastian Bach e outros compositores de música clássica.

As três décadas que separam Cope de "Chain Tripping" foram de muito desenvolvimento das tecnologias. A artista americana Holly Herndon, que desenvolve uma pesquisa acadêmica sobre o assunto na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, é um exemplo das novas possibilidades.

Ela explorou ainda o uso de programas de edição de imagens. Isso porque é possível, por exemplo, que os computadores criem sons a partir de imagens.

Acontece que, para além de fatores artísticos, existe uma discussão jurídica. Se as músicas do trio Yacht e de Herndon são experimentações artísticas tidas como obras originais, outras podem incorrer no plágio e em outros crimes.

É o caso da música falsamente atribuída a Drake e The Weeknd, que acumulou 15 milhões de visualizações no TikTok, mas fo removida por violação de direitos autorais a pedido da gravadora Universal Music.

A tendência divide opiniões. Em uma cena de "The Computer Accent", o jornalista John Seabrook, autor do livro "The Song Machine: Inside the Hit Factory", defende a teoria de que, nas últimas décadas, a ideia de que compositores profissionais da indústria trabalham a partir de pura criatividade humana é tola.

Isso porque, diz ele, a música pop segue padrões e fórmulas cada vez mais previsíveis, o que facilita o trabalho das ferramentas de inteligência artificial, que buscam justamente identificar, repetir e recombinar o que já existe.

O uso de obras de arte para alimentar e treinar os sistemas —o chamado "machine learning", ou aprendizado de máquina— tem sido um tema central da discussão internacional sobre direitos autorais, que também chegou ao Brasil. Há um projeto de lei sobre o tema, criado pelo senador Rodrigo Pacheco, do PSD-MG, em tramitação na Câmara dos Deputados.

"Um ponto importante sobre a mineração de dados [para alimentar as máquinas] é que o objetivo seria extrair padrões e correlações. Padrões de conceitos e ideias não são protegidos por direitos autorais", diz o advogado Luca Schirru, especialista em direitos autorais.

São complicações ilustradas por casos recentes de acusações de violação de direitos autorais, como o de Ed Sheeran. O cantor foi acusado de plagiar "Let's Get It On", de Marvin Gaye, em sua "Thinking Out Loud". Ele foi inocentado, e sua advogada disse para o júri que "as semelhanças de acordes e ritmo entre as faixas são elementos básicos da composição musical".

A partir desse argumento, a colaboração entre Drake e The Weeknd, então, não poderia ser acusada de violar direitos autorais simplesmente por reproduzir ou imitar elementos que geralmente compõem uma música de um ou do outro cantor.

O maior problema é o uso da voz. A Legião Urbana Produções Artísticas, empresa responsável pelo espólio de Renato Russo, comunicou a Universal Music sobre o "cover" de "Batom de Cereja" e pediu para que o departamento jurídico da gravadora avaliasse as providências cabíveis.

O uso de inteligência artificial para uma nova faixa dos Beatles, anunciada por Paul McCartney no mês passado, também chama atenção, embora a tecnologia tenha sido usada apenas para separar a voz de John Lennon das dos demais ex-beatles numa gravação pré-existente, em vez de recriá-la.

Vozes são protegidas não por leis de direitos autorais, mas pelas chamadas leis de direitos da personalidade. Herndon, a cantora e pesquisadora americana, relembra casos de um comercial de 1998 em que a Ford contratou uma das backing vocals de Bette Midler para imitar sua voz. A empresa foi processada e perdeu nos tribunais.

A aposta de Schirru, o especialista em direitos autorais, é de que leis e tipificações sejam alteradas ou criadas no futuro para se adequar aos novos usos de inteligência artificial.

"A preocupação, como existe com qualquer tecnologia, é que a tecnologia passe a usar você, e não o contrário. Os seres humanos precisam permanecer no topo do monte, e o ônus recai sobre nós, mais do que nunca, de sermos intencionais com o que criamos", diz Sebástian Pardo, do filme "The Computer Accent".

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