Descrição de chapéu Artes Cênicas

Como 'A Raposinha Astuta' imita a natureza na música para falar do ciclo da vida

Obra do tcheco Leos Janácek estreia no Theatro São Pedro contemplando história de animal falante sem tom infantil

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São Paulo

Leos Janácek era uma pessoa bizarra. O compositor tcheco velou a filha no leito de morte, anotando numa caderneta o ritmo de sua respiração, cada vez mais lenta. Era um hábito antigo. Ele perambulava pela cidade, documentando o som dos pássaros e o ritmo da fala dos transeuntes. Não à toa, sua ópera "A Raposinha Astuta", composta há cem anos e que estreia nesta sexta-feira (21), no Theatro São Pedro, se alicerça no som da orquestra.

Janácek não distinguia a música da natureza. Por isso, a composição sinfônica define todo o ambiente da ópera, a trama e a cenografia. As melodias parecem orbitar a acústica do teatro, como se a música suspendesse o tempo.

Cena da montagem de 'A Raposinha Astuta', ópera de Leos Janácek, no Theatro São Pedro
Carla Caramujo em cena da montagem de 'A Raposinha Astuta', ópera de Leos Janácek, no Theatro São Pedro - Heloisa Bortz/Divulgação

No início do século 20, Janácek reagia à tradição romântica, unindo o sentimento do compositor ao mundo que se apresentava à paisagem. Era uma atitude comum ao movimento impressionista, mas Janácek criou uma linguagem particular, transmitindo à partitura a variedade de ritmos da cultura morávia.

"A língua é o principal desafio. É a primeira vez que canto em tcheco. Para alcançar uma boa dicção, temos de cantar não apenas sobre as vogais, mas também sobre todas as consoantes", diz a soprano portuguesa Carla Caramujo, que interpreta a Raposinha.

As suítes orquestrais, entremeadas por balés, emudecem os cantores em cena, exigindo deles desenvoltura na atuação cênica. Há uma dicotomia na música sinfônica: a partitura tem um esforço programático, caudatário do alemão Richard Wagner, para chamar atenção para a fauna e flora.

Na primeira cena, as cordas em pizzicato tematizam o andar fugaz da raposinha, a personagem principal. Ao mesmo tempo, as extensas paisagens sonoras flutuam no espaço, indicando a imprevisibilidade do libreto.

Com direção cênica de André Heller-Lopes e direção musical de Ira Levin, a montagem conta a história da passagem da infância para a idade adulta dessa raposinha, vivida por Caramujo. Ela é raptada por um caçador, personagem do barítono Vinicius Atique, e passa a viver em uma fazenda na companhia de uma granja de galinhas.

Enfastiada com a vida de prisioneira, a raposinha foge da fazenda e ainda conhece um raposo, personagem da mezzo-soprano Denise de Freitas. A dupla se torna um casal, que gera uma numerosa prole.

No fim da ópera, a raposinha é morta a tiros pelo caçador. Voltando ao lugar onde ele havia conhecido o animal, o caçador vislumbra, então, o ciclo da vida. "Janácek não tinha uma visão catastrófica da morte, afinal ela deixa uma dezena de filhotes em vida", afirma Caramujo.

A origem de "A Raposinha Astuta" remonta a uma série de 200 desenhos do pintor Stanislav Lolek, que entrou para a cultura popular da República Tcheca. Como numa história em quadrinhos, os desenhos se transformam num romance, escrito, em 1921, por Rudolf Těsnohlídek. Janácek transformou, então, o livro "A Raposinha Astuta" na ópera homônima.

Do mesmo compositor, Heller-Lopes já dirigiu "Jenufa", "Katia Kabanová", "O Caso Makropoulos" e "O Diário de um Desaparecido". Nas montagens, o diretor mobilizou quase o mesmo elenco, oferecendo aos artistas uma imersão na linguagem de Janácek.

"Ele é um dos poucos compositores que eu posso ficar um mês imerso em sua música sem cansar. Eu chego em casa e posso ouvir Janacek", diz Heller-Lopes. Dando vida a tantos animais, a ópera costuma receber um tratamento infantil, o que não está presente na montagem.

Heller-Lopes prefere falar sobre a passagem do tempo e como os seres humanos lidam com a natureza, retomando as intenções iniciais do compositor. Na ópera, a percepção temporal está ligada a uma noção de circularidade do tempo. Afinal, a melodia da música serpenteia, não indica exatamente uma progressão. Enquanto isso, o espectador se depara com animais falantes.

Por isso, o diretor cênico propõe uma suspensão da realidade, ambientando a ópera em cenários que sugerem o surrealismo do pintor belga René Magritte. Como nas telas "Golconda" e "Os Amantes", os personagens vestem sobretudos e chapéus, e os bailarinos se beijam com os rostos envolvidos por um tecido. "Nós humanos queremos controlar o tempo, queremos entender o tempo", ele afirma. "Mas os animais simplesmente vivem."

A Raposinha Astuta

  • Quando Qua. e sex., às 20h, dom. às 17h. Estreia sexta (21), até 6 de agosto. Na sexta (28), às 20h, transmissão ao vivo pelo YouTube
  • Onde Theatro São Pedro - r. Barra Funda, 171, São Paulo
  • Preço R$ 30 a R$ 100
  • Classificação Livre
  • Autoria Leos Janácek
  • Elenco Vinícius Atique, Carla Caramujo, Denise de Freitas
  • Direção Ira Levin e André Heller-Lopes
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