Para João Donato, bossa nova não era um gênero, mas um modo de vida

Viagens do compositor pelos Estados Unidos embasaram seu estilo único no piano, feito da fusão do jazz com música cubana

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Hugo Sukman
Rio de Janeiro

Dos três Joões que andavam pelo Rio de Janeiro no início dos anos 1950 e que sonhavam uma bossa nova para o samba e a música brasileira, apenas um, João Gilberto, estava no Rio no final de 1959, quando ela finalmente estourou a partir do lançamento do LP "Chega de Saudade".

Outro deles, Johnny Alf, tão bossa nova que nem João era —ele se chamava Alfredo José da Silva—, estava em São Paulo, onde se pagava bem melhor, trabalhando para viver, na noite, em boates como o Michel e a Baiúca.

O terceiro, João Donato, havia acabado de embarcar para os Estados Unidos para uma temporada de dois meses que se prolongaria por pelo menos três anos, justamente os três anos de consolidação da bossa nova, agora não mais um gesto de vanguarda, mas um gênero musical.

O cantor e compositor João Donato, em 2019 - Lucas Seixas/Folhapress

Donato viajou sem culpa, porque tinha motivos de sobra por achar que não havia ambiente para sua música naquele Brasil de 1959. Já aos 15 anos não fora nem ouvido no programa de calouros de Ary Barroso porque apareceu de calças curtas. Ao ver o artista naqueles trajes, o apresentador o barrou com o argumento de que detestava crianças prodígio.

Meses antes da viagem, ele e João Gilberto foram contratados por um hotel em São Lourenço, em Minas Gerais, para tocar durante a estação de águas por uma semana. Ao fim da primeira noite, o dono do hotel chamou os dois, disse que honraria o cachê, que eles poderiam ficar hospedados no hotel com boca livre, mas que não tocassem mais. "Por favor", acrescentaria o homem.

Em entrevista recente, Donato disse que a bossa nova existiu "de tanto falarem nisso, de tanto batizarem o troço". Para ele, no entanto, "era um estilo de música, um modo de viver".

Talvez fosse o modo dos garotos em 1953 —sair com João Gilberto pela noite da zona sul carioca sem hora, buscando um som novo de samba, encontrando Tom Jobim e Vinicius de Moraes no Clube da Chave, boate que ficava no antigo Cassino Atlântico, no Posto 6 de Copacabana, e andar pela praia para, quase no Leme, no fim da noite, pegar o final da apresentação de Johnny Alf na boate do Hotel Plaza.

Cultivando novos hábitos, em vez do álcool e do cigarro dominantes, a maconha, erva da qual os dois eram entusiastas, mais afeita ao seu jeito relaxado. "A bossa nova", afinal definia o próprio Donato, "veio para dar um 'relax' no samba".

Em 1953 mesmo, sob os eflúvios de Tom de um lado, Alf de outro, Donato gravou talvez a primeira bossa nova, dois anos antes de Johnny registrar seu "Rapaz de Bem", cinco antes de João cantar e tocar "Chega de Saudade" com o estilo que enfim seria chamado bossa nova. Foi ainda um ano antes de "Tereza da Praia", o samba que Tom Jobim e Billy Blanco fizeram para juntar os dois cantores modernos da época, Lúcio Alves e Dick Farney.

Era "Eu Quero um Samba", de Janet de Almeida e Haroldo Barbosa, que Donato gravou com o grupo vocal do qual fazia parte na época, Os Namorados. Era a banda na qual seu acordeão —primeiro instrumento que tocou, antes do piano que o consagraria— fazia ritmicamente o mesmo papel que o violão de João cinco anos depois.

Seu arranjo vocal, totalmente inovador e dissonante na abertura de vozes, seria a modernização harmônica, o passo além da gravação original de 1945 feita pelo conjunto Os Namorados da Lua, liderado e arranjado por Lúcio Alves, seu ídolo ao lado de Dick Farney.

Se a bossa nova nasceu mais ou menos desses locais, personagens e gravações no Rio dos anos 1950, é possível dizer que os três Joões, cada um ao seu modo, buscavam reabilitar a bossa, ou seja o ritmo do samba naquela altura tão diluído pelo samba canção, com as melodias trabalhadas, mas harmonizações mais ousadas e modernas.

No encontro com os gênios de Tom e Vinicius no Rio depois de 1959, João fez do seu estilo a própria bossa nova. Johnny, a vida inteira na noite e nos estúdios, se aprofundou como compositor de (sambas) canções cada vez mais intimistas e sofisticados. Enquanto isso, Donato, o menino de calças curtas e relaxado, a partir de sua viagem aos Estados Unidos fez a ponte do samba com o jazz e, principalmente, o jazz latino e a música cubana.

Lá, ele faria parte de grupos importantes como os do percussionista cubano Mongo Santamaría ou do vibrafonista Carl Tjader e gravaria com o saxofonista Bud Shank, entre muitos outros. Viraria lenda no Brasil, para onde voltou em 1962 —com a bossa nova consolidada— e, em mais um contraponto histórico, não faria parte do famoso show do Carnegie Hall porque estava no Brasil.

Gravaria neste momento de volta dois discos antológicos, instrumentais, agora liderando seus conjuntos tocando seu piano-martelo. Ficaria, em seguida, mais dez anos nos Estados Unidos aprofundando essa fusão do samba com o jazz e a música cubana e, quando voltou, finalmente mergulharia fundo na música popular, seja como arranjador, compositor ou um showman personalíssimo, fazendo concertos antológicos marcados pela qualidade das suas composições e a inventiva de seus improvisos.

Ironicamente, viraria sobretudo um ícone da bossa nova, e passaria os últimos 20 anos cultuando nos palcos o gênero que criara quase anonimamente. Como um João qualquer.

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