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Livros Prêmio Nobel

'Paraíso', do nobelizado Abdulrazak Gurnah, é de delicadeza superlativa

História de garoto vendido pelo pai no leste africano é presente de um autor ambicioso e perfeccionista

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João Batista Natali

Jornalista, mestre e doutor em semiologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e pela Universidade de Paris-Nanterre.

Paraíso

  • Preço R$ 89,90 (320 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Abdulrazak Gurnah
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Caetano W. Galindo

"Paraíso" foi o quarto romance do tanzaniano Abdulrazak Gurnah, escritor menos conhecido por aqui, até que recebesse em 2021 o Prêmio Nobel de Literatura.

homem negro grisalho de terno, com cavanhaque
O escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah, premiado com o Nobel de 2021 - Joel Saget/AFP

A primeira pergunta inconveniente que se fez na época foi se o Nobel cedera ao politicamente correto ao premiar um autor africano. A afirmação não faria sentido. O romance, que é o segundo do escritor a sair pela Companhia das Letras, traz um texto superlativamente denso e delicado.

Gurnah, hoje professor aposentado da Universidade de Kent, no Reino Unido, tinha 46 anos quando o romance foi lançado no Reino Unido, em 1994. Sua artimanha consistiu em costurar um enredo de seis anos ao redor do personagem Yusuf, adolescente que aos 12 anos é entregue pelos pais a um importante mercador para o pagamento de dívidas.

Azis, o novo proprietário do garoto, tem no livro um papel ambíguo. Ele é juridicamente dono de escravos, mas renega esse tráfico e insiste, religioso e afável, na função civilizatória do comércio. Transporta o islamismo e hábitos culturalmente avançados nas longas caravanas com que circula pelo leste da África.

Estamos no final do século 19, e o cenário traz países de língua suaíli que depois formariam Uganda, Tanzânia e Quênia. Aquele pedaço do continente não está ainda sob o domínio integral do colonialismo europeu. O islamismo árabe tem mais poder do que a Alemanha, que controlará parte da região até sua derrota na Primeira Guerra Mundial.

Tais informações permitiriam que Gurnah se acomodasse ao honroso estilo etno-histórico. Mas é aí que o autor nos presenteia com seu perfeccionismo e sua ambição literária, entregando uma narrativa surpreendente e bonita.

Alguns exemplos. Yusuf observa um casal de europeus numa estação ferroviária. O homem "parecia entalhado numa única peça de madeira", e a mulher "passava o lenço pela boca, removendo casualmente camadas de pele seca".

Ou ainda, tio Azis —Yusuf de início acreditava que o mercador fosse seu parente— "tinha um cheiro estranho e incomum, uma mistura de couro e perfume, gomas e especiarias, e algum outro aroma menos definível" que fazia o garoto "pensar em perigo".

O romance captura no Alcorão e incorpora a sua trama a história do profeta Yusuf, vendido como escravo no Egito e que, adolescente bonito, lida com a sedução da mulher de um oficial do faraó. O jovem rejeita o adultério e a mulher, para se vingar da afronta, o acusa de tentar possuí-la, numa inversão de papéis que acaba mal para o rapaz.

Em determinado momento, Yusuf , ancorado na palavra "vergonha", percebe que é um prisioneiro de Azis e se convence de que precisa escapar da armadilha em que a dívida do pai o colocou. Procura outros cúmplices, como Khalil, seu mais constante companheiro. Mas nem ele nem os demais aceitam a alternativa de fuga. Estão estranhamente acomodados ao servilismo.

O que nos transporta ao plano das analogias. Yusuf é ao mesmo tempo o personagem e a cultura do leste africano que passará em breve para o controle do colonialismo europeu, mas com mecanismos de exploração menos caricaturais. Seres humanos não serão mais entregues em troca do pagamento de dívidas.

A rede de significados do romance funciona porque em nenhum momento Yusuf se prostra indignado com a decisão de seu pai biológico, um comerciante que acumula fracassos e que, no momento da venda do filho, é proprietário de uma hospedaria que permanece às moscas, porque a estrada de ferro deixou de despejar passageiros na cidadezinha com nome fictício de Kawa.

As referências autobiográficas do adolescente são fracas, e nele não há ressentimentos. Mesmo contra a mãe, que o mandou "comer cupim" quando ele pediu algum alimento, porque estava com fome.

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