O que são livros eróticos de 'dark romance', com tortura, bullying e tesão por estupro

Obras que glamorizam descrições desses crimes, sucesso entre brasileiros, acendem debate sobre consumo entre jovens

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Zoe X, autora de dark romance, livros eróticos que apostam em temas como violência, tortura e abuso psicológico Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

Crime hediondo para a Constituição Brasileira, o estupro se tornou demanda de entretenimento, ao menos para um grupo de leitores ávidos, que sentem tesão ao ler relatos ficcionais de mulheres estupradas.

Esse é um dos motes que preenchem as páginas de livros de "dark romance" ou de "bully romance", derivados do gênero erótico que vêm excitando cada vez mais brasileiros com histórias que subvertem a moral e os bons costumes.

Zoe X, autora brasileira de dark romance que vive sob anonimato - Karime Xavier/Folhapress

Obras do tipo unem cenas de sexo explícito à violência, mas fora do escopo do consentimento do BDSM. Há personagens que praticam tortura física, como em "Renunciada: O Resgate da Filha do Mafioso", mulheres que sofrem abuso psicológico do parceiro, caso de "O Monstro em Mim", ou que se apaixonam pelo homem de quem sofrem bullying, como em "Bad Prince".

O "dark romance" toca ainda em outros tantos temas sensíveis, como suicídio, vício em drogas, depressão, assassinato, transtornos mentais, assédio moral, homofobia, tráfico de pessoas, incesto e em obsessões sexuais moralmente rechaçadas.

O "bully romance", por sua vez, tem sempre um casal que se ama e que pratica bullying entre si, na cama ou fora dela, em ambientes estudantis. Geralmente é o homem quem faz troça da mulher, mas pode ocorrer o inverso, e há também histórias com amores LGBTQIA+.

Ainda que controversas, as cenas de violência são descritas nos mínimos detalhes. É uma das habilidades da brasileira Zoe X, que usa pseudônimo e não revela sua identidade, e que deixa fluir sua criatividade em "Under Your Skin", cuja protagonista narra de forma minuciosa como foi sofrer pedofilia do pai desde os cinco anos.

Em outro trecho, ela goza ao ser estuprada. É que, traumatizada pelo seu passado, a garota desenvolve fetiche por sexo não consensual e passa a transar com homens que pensam estar violando ela. Nas cenas, a personagem diz em voz alta não querer sexo, mas agradece mentalmente pelo parceiro que a estupra.

Aliás, esqueça os príncipes encantados. Os galãs do "dark romance" são na verdade anti-heróis ou vilões, entre psicopatas, mafiosos, chefes de gangue, sequestradores e stalkers.

E eles seduzem milhares de leitores. A Amazon, hoje principal vendedora virtual de livros, escancara a popularidade do gênero no seu ranking de ebooks mais vendidos atualmente. Na lista, oito dos 50 primeiros lugares são ocupados por títulos de "dark" ou "bully romance", e outros flertam de perto com os gêneros.

A fama também é provada pelo Google. Segundo o Trends, ferramenta que mede os termos mais populares do site de buscas, o interesse por "dark romance" cresceu 1.275% em cinco anos e atingiu recorde de pesquisas no ano passado. Mundialmente, a procura pelo termo cresceu 77,1% entre 2022 e 2023.

Quem busca por "dark romance" no Twitter encontra pessoas debatendo diariamente livros do gênero e até dizendo que gostaria de viver um amor como os desse tipo de história. No TikTok, a hashtag #darkromance tem 1,3 milhão de publicações.

Lá fora, o dark romance surgiu em meados de 2016, depois da explosão de "Cinquenta Tons de Cinza" (2011), livro que mostrou ao mercado editorial quão sedentas estavam as pessoas por livros eróticos.

A brasileira Zoe X percebeu que poderia unir diversão e trabalho com os romances eróticos em 2018, conta por videoconferência, sem ligar a câmera. Ela faz mistério sobre quem é desde que se lançou como autora independente em 2016. Além de nunca revelar seu nome, Zoe X só aparece em fotos ou em eventos com o rosto quase todo coberto por capuz e máscara.

Capa do livro 'Assombrando Adeline', livro de dark romance, um gênero derivado dos livros eróticos
Ilustração da capa de 'Assombrando Adeline', livro de dark romance americano publicado no Brasil pela Editora Cabana Vermelha - Divulgação

A estratégia deu certo. Seu maior hit, o livro "Bad Prince", lançado em 2022, tem 12 mil avaliações na Amazon, pouco atrás das 14 mil de "Heartstopper", best-seller mundial que virou série na Netflix naquele ano.

Na trama, Scarlet Wright ama um garoto que joga cocô nela, ameaça enterrá-la viva e a humilha entre os colegas da universidade. Mas nada disso é o suficiente para a protagonista se desapaixonar. "Às vezes as atitudes do personagem não tem justificativa, ele só é o que é. Cabe ao leitor decidir se vai engolir ou não", diz Zoe X.

Maravilhoso, intenso, apaixonante e viciante são alguns dos adjetivos usados nas resenhas mais recentes do livro publicadas na Amazon. "Me perguntei como Scarlet pôde aceitar tudo, mas percebi que a autora queria trazer que, mesmo sendo muito feio, cruel, até mesmo aterrorizante, está tudo bem você querer amado e correr atrás daquilo", escreveu Julia Ventura, que deu nota máxima à obra.

O comentário dela ilustra uma discussão que corre no meio literário —o dark romance romantiza a violência?

Paulo Ratz, dono do Livraria em Casa, um dos maiores canais literários do YouTube no Brasil, diz que sim. "Vivenciei muito bullying na adolescência. Me incomoda ver isso hoje sendo tratado de forma higienizada, comercial e capitalizada."

Entre seus vídeos de maior sucesso está a resenha de "Bad Prince", com mais de 100 mil visualizações, em que ele elenca motivos pelos quais acha o livro ruim e problemático. Ele também bombou ao falar mal de "Assombrando Adeline", que tem cenas de sexo com arma de fogo e personagens com fetiche em interagir sexualmente com quem está dormindo.

"Você pode escrever a maior atrocidade do mundo que vai ter um ou até 10 mil fãs", afirma. "O problema é quando você justifica um personagem violento de forma romantizada. Dark romance é lido por pessoas muito jovens."

Zoe X, a autora, também vê problema se menores de idade chegam aos seus livros, e diz censurá-los quando é abordada nas redes sociais.

Nana Simmons, que escreve livros de dark romance desde 2016, se isenta da culpa. "É um problema, mas não nosso. As escritoras não podem perder a liberdade pensando se o adolescente tem acesso ao livro ou não. É uma discussão sem solução."

Para repelir as crianças e adolescentes, as autoras dizem nas suas ações de divulgação, na sinopse do livro e nas primeiras páginas que o conteúdo é destinado a maiores de 18 anos. Escrevem ainda uma lista de gatilhos, ou seja, de temas sensíveis que serão abordados na história e que podem despertar traumas de quem lê.

Simmons diz ser uma das importadoras brasileiras do dark romance, tendo enfrentado rejeição ao lançar seu primeiro livro do gênero em 2016.

Ela já escreveu sobre estupro, tráfico infantil, aborto, e detalhou cenas de assassinato, mas repudia histórias com homens que maltratam as protagonistas. "O personagem não pode dar um tapa no rosto da mocinha e ficar tudo bem. Ele não pode matar o cachorro dela e depois ser perdoado", diz ela, que observa uma maioria esmagadora de mulheres consumindo o gênero.

Mas não há consenso sobre quais são os limites do dark ou do bully romance, afirma, já que vários livros com casais que se agridem estão entre os favoritos dos leitores.

Histórias desse tipo, com violência sexual, podem servir como canal de expressão para aspectos ocultos da nossa personalidade, afirma a psicóloga e sexóloga Mariana Farinas.

"O livro desempenha uma função compensatória para a psique da mulher, por exemplo, que tem a rotina tediosa, com filho, trabalho, casamento, e uma vida sexual sem graça. Ela pensa ‘poxa, e se de repente eu fosse sequestrada, estuprada e violentada por um homem estranho que não sei quem é?’", diz a sexóloga.

Só não dá para confundir ficção e realidade. "A excitação [pelas histórias] não implica no desejo de vivenciar essas situações na vida real. A mulher psicologicamente saudável sabe que uma relação desse tipo não funciona na prática", acrescenta a especialista.

Polêmicos, esses livros ainda estão fora dos catálogos das grandes editoras do Brasil. A maioria das autoras do gênero lançam as obras só em ebook e de forma independente, disponibilizando-os por preços que costumam variar entre R$ 2 e R$ 7.

Outro jeito de se sustentar com a publicação de livros eróticos no Brasil é disponibilizá-los no Kindle Unlimited, um serviço por assinatura da Amazon que reúne milhões de títulos por R$ 19,90 ao mês. O autor recebe uma quantia ínfima por páginas lidas —e é por isso que a maioria dessas obras têm centenas de páginas.

É um trabalho que compensa muito financeiramente se você já construiu sua reputação, afirmam Zoe X e Nana Simmons, sem revelar quanto ganham.

Algumas editoras pequenas publicam dark e bully romance, seduzindo a audiência com versões físicas dos livros. É o caso da Cabana Vermelha, casa de "Under Your Skin", de Zoe X. Mas as obras ainda não alcançam as grandes livrarias, conta Luana Silva, editora da empresa, por causa da polêmica que ronda o gênero.

A má fama que o dark e o bully romance têm no mercado pode mudar em breve, afirma Rafaella Machado, editora da Verus, selo de livros do Grupo Editorial Record que ela quer destinar à publicação de histórias de amor.

A ideia é vender "dark romance" também. "É um tipo de literatura vista como menor só por estar ligado ao prazer feminino", diz Machado. "Livros com cenas de sexo gráficas não perdem sua qualidade literária. Pelo contrário, eles dão muito espaço para brincar."

Colaborou Vitoria Pereira

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