Descrição de chapéu São Paulo

Anish Kapoor busca, no interior humano, respostas para um mundo em chamas

Obras do artista fazem parte da exposição 'Inflamação', que propõe outras formas de se pensar o mundo e o indivíduo

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Beta Germano
São Paulo

Muito tem se falado sobre o fogo que toma a paisagem de todo país. Mas e a paisagem interior, como nosso espaço interior pulsa, sangra, queima? É um dos questionamentos que envolvem "Inflamação", exposição de Anish Kapoor, que abre neste domingo (15) na Casa Bradesco, marcando a inauguração do espaço cultural na Cidade Matarazzo, região central de São Paulo.

A mostra reúne um "site specific" inédito e 18 obras de séries do artista, muitas delas exibidas pela primeira vez no Brasil. Mas Kapoor não é novidade por aqui. Em 2006, Marcelo Dantas, o curador, articulou a primeira exposição do aclamado anglo-indiano na América Latina e comparar as duas mostras dá indícios da escolha pelo nome "Inflamação".

Obra de Anish Kapoor da exposição 'Inflamação', que se inicia com a abertura da Casa Bradesco
Obra de Anish Kapoor da exposição 'Inflamação', que se inicia com a abertura da Casa Bradesco - Karime Xavier/Folhapress

O projeto central daquela exposição era um trabalho chamado "Ascension", uma escultura feita de fumaça. Muito efêmera, quase invisível. Kapoor apresentava ao brasileiro um dos principais conceitos que norteiam sua produção: o não-objeto.

Ao chegar na Casa Bradesco, o espectador se depara com um volume amórfico, estranho e agigantado, muito corporal e massivo, preenchendo todo o espaço. Peça central, "Blinded by Eyes, Butchered by Birth" é um corpo inflamado que figura uma sociedade em chamas.

"Em 2006 talvez ainda fosse possível ter um otimismo profundo. Veja onde estamos agora. Politicamente, vivemos um desastre em quase todo o mundo. Parece que perdemos toda a nossa visão de utopia, de algum futuro positivo", diz o artista. "Em todos os níveis, psiquicamente, fisicamente e outros, estamos num estranho período de depressão."

Para Dantas, vivemos em uma era de permanente inflamação, um tempo em que indivíduo e o coletivo estão sempre em posição de alerta diante de um processo infeccioso. "A inflamação é o ato de colocar em chamas. Representa uma resposta do corpo à infecção e uma resposta social na forma de um levante" diz.

Kapoor ressalta que as mudanças necessárias para sair deste estado passam por uma percepção filosófica de nós mesmos. Para isso, ele trabalha com escala, espaço, materialidade e cor invertendo a lógica de nossa percepção do mundo e do nosso eu.

Na maioria das obras da mostra o protagonismo é do vermelho vibrante que remete ao sangue e à carne. Mas a ideia não é falar sobre dor e sim de uma paisagem interna. Kapoor elabora uma espécie de ativismo existencial e sugere esse olhar para o interior tanto por meio de obras mais orgânicas e densas —como "Wound, Internal Object in Three Parts", "The Unremembered" e "The Innocents"—, tanto em trabalhos geométricos e afiados com superfícies mais polidas.

Obra 'The Innocents', do artista Anish Kapoor
Obra 'The Innocents', do artista Anish Kapoor - Joana França/Divulgação

"Blood Cinema", por exemplo, é uma lente gigante, com quase dois metros de diâmetro, coberta por uma película colorida, que transforma o espaço, e qualquer elemento que passa atrás dela, num melodramático reino rubro.

"O vermelho é a cor do sangue e da terra. E é a cor do feminino. Nós, homens, banimos o vermelho porque é muito difícil lidar com ele. Nossa Senhora originalmente usava roupas vermelhas e agora é representada em azul. E Cristo tem sangue correndo por um pequeno ferimento no rosto. O que eu busco é entender o que está dentro", afirma o artista.

Tanto a terra quanto o sangue são nossas matérias essenciais, aparecendo em rituais de diversas sociedades. O vermelho, portanto, não é apenas uma cor, mas uma condição humana carregada de simbolismo.

A coexistência de oposições é comum na trajetória de Kapoor. E foi a partir dessa ideia que ele criou "Blinded by Eyes, Butchered by Birth", inflável concebido para a mostra, que evoca a inflamação de um órgão. Ele tensiona a arquitetura e clama por atenção —o processo de infecção está em curso e parece avançar rápido.

Obra 'Blinded by Eyes, Butchered by Birth', de Anish Kapoor
Obra 'Blinded by Eyes, Butchered by Birth', de Anish Kapoor - Joana França/Divulgação

"O título aponta para reversos. O olho é o órgão pelo qual vemos e o nascimento é o oposto da morte. Esse trabalho também segue essa lógica. É um objeto enorme, muito físico e presente, mas é um balão. É ar, não é nada. E poderia voar, mas está preso", afirma o artista.

Esta associação de opostos também está nos "Void" e nos "Non-Object", obras feitas com nanotecnologia Vantablack, material que detém o selo de substância mais escura já produzida pelo ser humano, absorvendo quase toda a luz visível. Apesar de nos abduzir para a escuridão, as séries não sugerem um espaço negativo, mas uma presença que falta.

"Minha proposta é que esse material leve o objeto para além do seu ser", afirma o artista, que adota o negro profundo como uma das estratégias para capturar o público e guiá-lo até o encontro com o sublime. Se Immanuel Kant descreveu o sublime como um espaço onde o espectador perde o senso do seu eu, Kapoor acrescenta que existe este mesmo vasto vazio dentro de nós.

A relação espaço-escultura-corpo também faz parte de seu processo criativo. Consciente dessa conexão e de sua alteração a partir do movimento, Kapoor joga com o visitante ao desenvolver uma espécie de "coreografia da percepção", desafiando arquiteturas e criando ilusões para instigar indagações entre o que é ou não possível ver ou refletir e o que é latente e perceptível. A obra que melhor figura este procedimento é "Hidden Mirror/Shulamite and Lajja Gauri", um espelho que não necessariamente vai refletir a sua imagem.

Segundo Kapoor, arte é ilusão e é nela que podemos encontrar alguma realidade mais profunda. Não à toa, ele é célebre por seus espelhos —um objeto que envolve e captura o visitante, entre imagens distorcidas e sequestradas.[

Anish Kapoor: Inflamação

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