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27/09/2012 - 19h01

Como a prostituição se tornou a mais quente questão social na França

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ANGELIQUE CHRISAFIS
DO "GUARDIAN"

Em um estacionamento em uma área industrial deserta em Lyon, Karen, uma mulher de quase 50 anos, está acomodada no assento do passageiro de um velho furgão Ford Transit, usando apenas roupas de baixo pretas. São 19h30de uma noite de sexta-feira. Uma lanterna de luz rosada está acesa no painel. Não demora para que carros comecem a circular pelo estacionamento --jipes, modelos antigos, Mercedes.

Os carros reduzem a velocidade para que os ocupantes contemplem as mulheres em corpetes acomodadas em uma dúzia de furgões brancos estacionados. "Alguns homens circulam por horas, só olhando", diz Karen. "Quando param, perguntam o preço e pedem desconto. E eu rebato perguntando se é para compensar a gasolina que desperdiçaram".

Um carro prateado reduz a velocidade. "20 euros por um boquete, 40 euros por 'amor'", ela diz, sorrindo. "Caro demais", responde o motorista, acelerando. Um homem de 60 anos aceita pagar 40 euros por sexo. Karen se transfere à traseira do furgão, na qual instalou uma cama, um aquecedor, cortinas de cor púrpura e um gaveteiro. Três minutos mais tarde, o homem vai embora.

Karen estende um novo lençol de papel na cama, ajeita o cabelo loiro. "É tudo assim rápido", diz. A maior parte da noite ela passa esperando. De repente, em 15 minutos, três clientes pagam por sexo, entre os quais um jovem espanhol na casa dos 20 anos, usando roupas caras. Nenhum demora mais de cinco minutos. Karen conseguiu satisfazer a cota de faturamento diário de que precisa bancar suas despesas.

Antiga secretária na cidade de Toulon, uma base naval, casada três vezes e mãe de duas filhas, Karen começou a fazer sexo por dinheiro nos anos 80; trabalhou nas ruas por breve período perto da estação ferroviária, fazendo sexo em geral nos carros dos clientes, "o que é muito desconfortável", diz. Desistiu desse trabalho e se casou, mas em 1992, divorciada e com uma filha pequena, precisou subitamente "colocar comida na mesa".

Voltou a fazer sexo por dinheiro, primeiro em um bar erótico e depois recebendo em casa os clientes que obtinha por meio de anúncios classificados. Agora, trabalha nas ruas há sete anos, em seu furgão, da segunda ao sábado, entre as 19h e a 1h, e paga impostos como trabalhadora autônoma. "Meu lema é nada de cafetão, nada de chefe. Prefiro isso a trabalhar em um escritório, aguentando gritos de um patrão por um salário medíocre".

Suas regras são rígidas: camisinhas para qualquer modalidade de sexo, e ela não beija os clientes. "É preciso chegar ao fundo do poço para fazer isso", afirma. "Não é um trabalho fácil. As pessoas dizem que somos vítimas, que somos alienadas, que fomos molestadas sexualmente na infância, mas nunca fui estuprada. Meu trabalho é esse por escolha".

Ela não olha o cliente nos olhos no momento do sexo --"olho para qualquer coisa menos nos olhos"-- e eles raramente dizem como se chamam. Mas em sua primeira gaveta, ao lado das camisinhas, está uma petição que diversos deles assinaram, com letra legível e declarando sua profissão -"funcionário público", por exemplo, ou "motorista". É um protesto contra a guerra à prostituição declarada pelo novo governo da França.

Gonzalo Fuentes/Reuters
Dominique Strauss-Kahn, político socialista francês, acusado de fazer parte de rede de prostituição
Dominique Strauss-Kahn, político socialista francês, acusado de fazer parte de rede de prostituição

A questão dos profissionais do sexo não teve destaque na campanha eleitoral francesa, mas veio a se tornar um dos debates sociais mais quentes para o governo do socialista François Hollande. Em junho, Najat Vallaud-Belkacem, a ministra da Mulher, fez o audacioso anúncio de que desejava "abolir a prostituição", na França e na Europa. "Meu objetivo, como o do Partido Socialista, é que a prostituição desapareça", ela disse.

No governo anterior, o Legislativo francês já havia adotado uma resolução para promover o objetivo de uma "sociedade sem prostituição". Mas será que um governo teria a capacidade de eliminar o sexo pago em uma sociedade? É um debate aceso entre os intelectuais franceses. Os profissionais do sexo saíram às ruas, acusando o governo de moralismo paternalista e alegando que os socialistas estão usando a questão para se distanciar de Dominique Strauss-Kahn, antigo líder do partido caído em desgraça por um escândalo sexual.

Strauss-Kahn, no passado o favorito entre os pré-candidatos socialistas à presidência, está sob investigação na França por cumplicidade em uma operação de prostituição, na qual cafetões supostamente forneciam trabalhadoras do sexo para as orgias que ele promovia. Ele alega que não pagava aos cafetões e não sabia que as mulheres eram profissionais do sexo. "Desafio qualquer um de vocês a distinguir entre uma prostituta nua e outra mulher qualquer nua", disse o advogado de Strauss-Kahn à imprensa.

O inquérito foi expandido para averiguar um suposto estupro grupal, devido a uma acusação de que uma das profissionais do sexo havia sido forçada a participar de atos sexuais. Strauss-Kahn nega qualquer violência.

FURGÕES DO SEXO

As "mulheres do furgão branco" que vendem sexo em Gerland, uma área industrial de Lyon, personificam as difíceis atitudes do governo francês com relação à prostituição. Como no Reino Unido, a prostituição em si --receber dinheiro para fazer sexo, ou pagar por ele-- não é crime. Mas as atividades que a cercam são. Há leis de combate ao proxenetismo -a prostituição forçada--, tráfico de pessoas, compra de sexo junto a menores e oferta de sexo por dinheiro em público. Os bordéis foram fechados por uma lei aprovada em 1946.

Lyon, a terceira maior cidade da França, abriga cerca de 600 prostitutas que trabalham nas ruas e sempre teve lugar central nos protestos das trabalhadoras do sexo. Em 1975, mais de cem prostitutas ocuparam uma igreja da cidade para protestar contra a perseguição da polícia, deflagrando protestos semelhantes no restante do país até que a polícia de choque as retirou do local.

Agora, os furgões de prostituição de Lyon são o novo campo de batalha. Em 2003, Nicolas Sarkozy, então ministro do Interior, introduziu uma controvertida lei que tornava ilegal ficar em um local público conhecido como ponto de prostituição e usando roupas indecentes. Para contornar a norma, as mulheres começaram a trabalhar em furgões. Vender sexo dentro de um veículo não violava a lei. Mas a polícia vem usando inúmeras medidas para reprimir o crescente número de furgões do sexo, o que inclui multas por estacionamento proibido e o uso de guinchos para recolher os veículos.

Em Lyon, as profissionais do sexo se queixam de multas constantes e de terem seus furgões recolhidos. Algumas das mulheres que trabalham no estacionamento da área industrial devem milhares de euros em multas de estacionamento e tarifas pelo recolhimento dos furgões, com juros mensais pelo atraso. "Você pode ser multada duas vezes por estacionamento proibido em 20 minutos, ou ter o furgão recolhido na terça-feira, pagar a multa e vê-lo recolhido de novo na quinta", disse uma delas. As mulheres resistem. Uma vem para Lyon a cada semana de Bordeaux, dirigindo 500 quilômetros, e dorme no furgão por quatro dias e noites, antes de retornar. Outras vêm da Borgonha ou de Paris.

O governo está planejando um processo abrangente de consulta pública antes de abolir a prostituição. Uma ideia em estudo é a de criminalizar o cliente, o que significa que quem adquirir sexo pode ser multado ou preso. Os clientes de profissionais do sexo enfrentam o risco de multas e prisão em apenas alguns países europeus. Em 1999, a Suécia se tornou o primeiro deles, seguida pela Noruega e Islândia. Mas está longe de certo que a França siga esse exemplo.

Os socialistas franceses gostariam que sua postura de oposição à prostituição fosse adotada pelo restante da Europa, especialmente no Reino Unido, o país que veem como mais próximo à atitude francesa. Outras nações vizinhas adotam abordagens radicalmente diferentes: na Alemanha, a prostituição é legal e regulamentada pelas autoridades municipais; na Espanha, grandes bordéis foram instalados na fronteira e são frequentados por clientes franceses em La Jonquera e na Catalunha.

GREVE DE FOME

Em um café perto da Place de Clichy, no norte de Paris, Elizabeth, 49, e sete trabalhadoras do sexo transgênero, oriundas da Argélia, estavam tomando café antes de sair para o trabalho na região oeste da capital francesa. Elizabeth, nascida em Cali, Colômbia, chegou ao local em seu furgão Citroën azul, que serve também como local de trabalho, com um colchão no porta-malas. Ela vende sexo por 40 euros no Bois de Boulogne, trabalhando das 23h às 6h, seis dias por semana. O parque, que era um dos locais prediletos de Sarkozy para o jogging diurno, é um dos pontos focais da repressão aos furgões das prostitutas. Elizabeth foi multada mais de 60 vezes este ano.

"Estou pensando em fazer uma greve de fome contra a ideia de criminalizar os clientes", disse. "Se o cliente corre risco de prisão, as trabalhadoras do sexo serão forçadas a agir clandestinamente, trabalhando em apartamentos e sujeitas aos cafetões. Nossa segurança será comprometida. A discussão quanto à possível criminalização dos clientes já faz com que menos deles circulem nas ruas".

Para Elizabeth, o trabalho sexual dos transgênero reflete a discriminação do dia a dia. "Como transexual, é difícil encontrar emprego, alugar um apartamento... É uma existência difícil. Essa muitas vezes parece ser a única opção", diz. Dois meses atrás, Jasmine, 30, começou a trabalhar em uma das estradas do Bois de Boulogne, depois de sair de Argel. "Não posso voltar à Argélia porque tenho a aparência que tenho. Meus pais acham que estou trabalhando como garçom, aqui. Só quero uma vida normal como transexual, trabalhando em uma loja ou salão de beleza. Mas tenho de pagar 40 euros por noite para morar em um quarto de hotel horrível, sem banheiro. Essa é a única maneira que tenho de ganhar dinheiro. Trabalho algumas horas por noite, das 11h às 2h. Tento escolher homens da faixa dos 40 anos, porque os acho mais seguros. Tenho medo, nas ruas, mas acima de tudo tenho medo da polícia".

O governo estima que existam 20 mil prostitutas na França, e que entre cinco mil e oito mil delas estejam em Paris. Um relatório legislativo publicado no ano passado por um deputado direitista e um socialista, propondo a criminalização dos clientes, afirmava que 90% das prostitutas de rua eram estrangeiras e que 80% das trabalhadoras do sexo na França haviam sido vítimas do tráfico de pessoas. Há 20 anos, a maioria das prostitutas de rua eram francesas, mas agora a maioria é estrangeira e as redes criminosas vêm ampliando sua presença, mais recentemente envolvendo mulheres nigerianas e traficantes romenos vendendo mulheres albanesas ou da Moldova.

Em julho, seis romenos foram autuados diante de um tribunal de Paris como proxenetas, acusados de surrar mulheres, confiscar seus passaportes e forçá-las a trabalhar como prostitutas. Em novembro passado, uma rede romena semelhante foi desmantelada, incluindo menores forçadas a trabalhar no Bois de Boulogne. O jornal "Le Progrès" reportou algumas semanas atrás que a polícia de Lyon havia resgatado uma mulher chinesa na casa dos 30 anos trancafiada em um apartamento do qual não saía há três semanas e onde era forçada a vender sexo seguindo um "cardápio" traduzido para o chinês.

Os clientes chegavam a ela respondendo a um pequeno anúncio sobre massagens. Mas as profissionais do sexo não confiam na proteção da polícia, e a atmosfera é de medo e hostilidade. Algumas profissionais do sexo se queixaram de insultos e agressão: em Colmar, em 2010, dois policiais e um funcionário da companhia ferroviária SNFC foram condenados pelo estupro de uma trabalhadora do sexo romena. Há outras alegações de estupro tramitando nos tribunais.

Enquanto isso, o Estado está sob pressão para fazer mais contra o tráfico de pessoas e a escravidão sexual. Os grupos que defendem os direitos humanos afirmam que as mulheres vítimas de tráfico que cooperam com as autoridades e denunciam seus agressores não recebem apoio e proteção suficientes.

"Em lugar de poses moralistas sobre a abolição completa da prostituição, por que não agir para acabar já com o tráfico humano e a prostituição de menores? As leis para isso já existem, mas o problema continua", disse um trabalhador do sexo na casa dos 20 anos, que trabalha à noite na floresta de Fontainebleau, perto de Paris.

Há debate intenso na França sobre considerar ou não todos os trabalhadores do sexos como vítimas, ou se os trabalhadores "independentes", operando sem cafetões e iniciando a formação de um sindicato, devem ser considerados como categoria separada. As feministas que defendem a abolição alegam que o ato de pagar por sexo é sempre um ato de violência, que força as trabalhadores do sexo a se anestesiar ou dissociar de seus corpos para suportar a experiência. "A escravidão não foi erradicada, mas foi abolida. A mesma escolha, no que tange à prostituição, representaria um avanço da civilização", diz a feminista Sylviane Agacinski.

Outra feminista conhecida, Elisabeth Badinter, co-escreveu uma resposta na qual afirma que a ideia de abolir a prostituição se baseia em "duas suposições discutíveis: a de que cobrar por sexo é uma afronta à dignidade da mulher e a de que todas as prostitutas são vítimas de seus repulsivos clientes". Ela afirma que uma mulher que vende sexo "não é necessariamente vítima da opressão masculina". E nem todos os clientes são "horríveis predadores ou homens obcecados por sexo que tratam todas as mulheres como objetos descartáveis".

Cloé Navarro, 27, porta-voz do Strass, o sindicato das trabalhadoras do sexo francesas, estudou enfermagem e agora vende sexo nas ruas na zona oeste de Paris a fim de pagar por seu curso de pós-graduação para o trabalho com crianças autistas. Ela diz que se sente mais segura nas ruas, trabalhando em hotéis ou nos carros de clientes, do que na Internet, onde não pode ver o homem antes de aceitar ou não a proposta. "Não é um trabalho que qualquer um possa fazer, mas é um trabalho real. É preciso empatia. As pessoas nos procuram com seus problemas. Às vezes acho que tenho a palavra 'enfermeira' carimbada na testa", diz.

Ela descreve seus clientes como "todo mundo", homens dos 20 aos 70 anos, viúvos, deficientes físicos e com "alta porcentagem" de pais de bebês ou crianças pequenas. "O governo está estigmatizando os trabalhadores do sexo. Trabalho a um quarteirão de uma delegacia de polícia. A abordagem abolicionista nos forçaria a trabalhar em locais inóspitos, onde cresceria a probabilidade de ataques", diz.

A nova face do sindicato é a de sua líder Morgane Merteuil, 25, que está fazendo pós-graduação em Literatura. Ela começou a trabalhar quando estudante, em um bar em Grenoble, mas agora opera apenas via Internet, como acompanhante independente. Oriunda de uma família tradicional da província e no passado militante anarquista, publicou o que define como um manifesto para as trabalhadoras do sexo feministas.

Recusa os "clichês de mídia" que dividem as profissionais do sexo entre as prostitutas de rua e as que operam no luxo. "Acho que nunca encontrei um cliente em um hotel com diária superior a 60 euros por noite", diz. Merteuil critica o novo governo de esquerda por sua "política moralista" e "paternalismo", e descreve trabalhar com sexo como "uma necessidade, a exemplo de qualquer outro trabalho", exigindo o abandono imediato da proposta de criminalização.

Em Lyon, Karen está se preparando para trancar o furgão e voltar para o namorado que a espera em casa. "Não é possível abolir a prostituição", diz. "Veja a pena de morte --ela evitou que haja homicídios?"

Tradução de PAULO MIGLIACCI.

 

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