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31/10/2012 - 16h00

Jo Nesbo e a fixação dos escandinavos por romances policiais

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JOHN CRACE
DO "GUARDIAN"

Não é divertido ser Harry Hole --"a pronúncia norueguesa é Hula, mas se você o chamar Hole, não tem problema"--, o policial de espírito independente que protagoniza nove dos romances policiais de Jo Nesbo, do gênero "Scanda-noir" (noir escandinavo). Nos últimos 15 anos Hole já foi baleado, esfaqueado e espancado inúmeras vezes; ele ostenta as cicatrizes que o comprovam, entre elas um dedo de titânio e um corte que vai de sua boca à sua orelha.

Torsten Silz/France Presse
Jo Nesbo é um dos escritores noruegueses mais bem-sucedidos em vendas de livro
Jo Nesbo é um dos escritores noruegueses mais bem-sucedidos em vendas de livro

Ele é alcoólatra e tem recaídas a toda hora. Seus dois melhores amigos na polícia --praticamente seus únicos amigos-- foram mortos, e ele não pode casar-se com Rakel, sua sofrida namorada de longa data, senão ela quase certamente teria o mesmo fim. E, no final de "Phantom" (fantasma), sua aventura mais recente, Hole foi abandonado numa vala de esgoto, dado por morto, com dois ferimentos de bala e ratos roendo seu corpo.

Existe algo de divertido em ser o criador de Harry Hole? Visto pessoalmente, Nesbo é descontraído, conversador e sorri muito, porém... Buscar identificar semelhanças entre autores e seus personagens pode ser um beco sem saída, e normalmente eu não me daria ao trabalho, só que Nesbo frequentemente chama a atenção a elas.

"Quando escrevi meu primeiro livro ('The Bat', que acaba de ser lançado em inglês), pensei que estava começando do zero. Me recordo de ter pensado se deveria fazer de Harry um daqueles protagonistas que é um pouco diferente de alguma maneira --gay, padre, deficiente físico ou qualquer outra coisa-- ou se deveria ficar com o estereótipo do policial independente, durão e cheio de problemas. E, depois de refletir, escolhi a segunda opção."

"Mas, quando cheguei ao terceiro livro sobre Harry Hole, percebi que havia áreas autobiográficas importantes no personagem. Não era algo pensado --simplesmente acontecia, sem que eu tivesse consciência disso. E ainda acontece. Escrevo alguma coisa que penso ter inventado, e é apenas quando, mais tarde, um amigo chama a atenção para o fato que eu percebo que escrevi sobre mim mesmo outra vez."

Tendo já passado tanto tempo juntos, seria de se imaginar que Harry e Nesbo já teriam ficado mais íntimos ao longo dos anos. Se sim, o que isso revela sobre a vida de Nesbo, agora que a vida de Harry ficou mais infeliz? Torturar seu alter ego é parte do processo que mantém sua sanidade?

Nem todas as sobreposições são não intencionais. Nesbo é torcedor do time de futebol londrino Tottenham Hotspur desde os dez anos. "Eu pensei em torcer pelo Arsenal, porque gostava das camisetas do time", ele conta. "Mas então meu irmão de 15 anos me falou com firmeza que eu não podia fazer isso e me deu dois dias para decorar os nomes de todos os jogadores do Tottenham. Meu irmão não era alguém que você quisesse desobedecer."

Harry também é torcedor do time, e, em "The Phantom", Nesbo provoca (ou brinca --a interpretação depende do time para o qual você torce), vestindo os traficantes de drogas em réplicas de camisetas do Arsenal. "Tenho vários amigos que torcem para o Arsenal e que me criticaram muito por isso", Nesbo conta. "Disseram: 'Apenas um covarde usaria seu poder de escritor para fazer algo assim.'" E o que ele respondeu? "Eu os mandei tomar banho."

É na psique que as divisões ficam menos bem definidas. Autor e personagem têm aproximadamente a mesma idade --Nesbo tem 52, e Harry, 49--, e Nesbo não hesita em descrever-se como uma pessoa solitária, como Harry. "Há pessoas que se cercam de outras pessoas quando estão com problemas", ele comenta. "Eu prefiro me isolar." Se Nesbo tem uma companheira, não se dispõe a revelar o fato. O único relacionamento estreito que ele admite ter é com sua filha de 13 anos.

Independentemente de até que ponto sua vida particular pode infiltrar-se em seus escritos, ele passa a impressão de um homem que encontrou uma maneira de viver inteiramente em seus próprios termos. Não é que ele se proponha a manter as pessoas à distância --é apenas que sua posição "padrão" é em retirada.

Seu sonho era ser jogador de futebol profissional, e ele quase o realizou, tendo jogado várias vezes para a equipe Molde, da primeira liga norueguesa, até uma lesão encerrar sua carreira de jogador quando ele ainda era adolescente. Nesse momento ele conseguiu uma vaga na Escola Norueguesa de Economia e, depois de se formar, um emprego como corretor de ações, especializado em opções e ações a futuro. "Fui um bom analista, mas péssimo vendedor", ele conta. "A ideia era que levássemos os clientes para sair e conquistássemos a simpatia deles, mas eu não tinha paciência para fazer isso e nunca gastava nada do meu orçamento de despesas com clientes. Apenas falava com as pessoas ao telefone de vez em quando."

"As pessoas me perguntavam o que eu achava que o mercado ia fazer, e eu dizia: 'Se você quiser saber isso, pergunte ao meu cachorro. Mas, se quiser saber por que uma ação específica pode estar com preço desvalorizado, vou lhe dar minhas razões'. Só sobrevivi nesse emprego porque tinha o mínimo de clientes que apreciavam meu tratamento pesado."

ROQUEIRO

A corretagem de ações era apenas seu ganha-pão. À noite, Nesbo era vocalista e compositor de uma banda de rock da qual fazia parte seu irmão mais jovem --uma atividade que quase certamente teria sido mais adequada para sua personalidade, se ele tivesse conseguido ganhar a vida decentemente com ela. "Quando fundamos a banda, não éramos muito bons. Mudávamos o nome da banda todas as semanas, para que a plateia não percebesse que éramos nós mesmos tocando outra vez. Então a banda nunca teve um nome para valer. Com o tempo, melhoramos um pouco, e os fãs começaram a perguntar quando 'di derre' ('aqueles caras', em norueguês) iam voltar. Então adotamos o nome Di Derre."

A banda ainda tem uma base fiel de fãs, apesar de não ter composto canções novas há mais de 12 anos, mas o momento decisivo aconteceu em meados da década de 1990. Nesbo era o único na banda a ter um emprego regular durante o dia, e a pressão de fazer shows à noite tornou-se demais para ele. "Falei à banda que eu não ia mais escrever canções nem viajar em turnê. Abandonei meu emprego e fui para a Austrália por seis meses para ver se conseguiria escrever um livro." Ele voltou com "The Bat", que recebeu o Prêmio Glass Key de ficção policial nórdica.

Nesbo não esperava ter sucesso instantâneo, mas ele se deixou levar. "Todos meus amigos que queriam escrever não tinham dado em nada, tentando escrever o grande romance europeu", ele conta. "Então eu propositalmente afastei essa possibilidade e me propus a escrever algo que fosse norteado pela história. Não foi tanto uma decisão comercial quanto literária. Graças ao sucesso de Henning Mankell e Peter Hoeg, o fato de escrever thrillers policiais não carregava na Escandinávia o mesmo estigma quanto é o caso em muitas outras culturas. Pelo contrário, na realidade. Muitos escritores escandinavos que tinham ficado conhecidos com ficção literária sentiam que queriam se aventurar com um policial, para mostrar que eram capazes de competir com os melhores. Se Salman Rushdie fosse norueguês, com certeza teria escrito pelo menos um policial."

Tendo feito sucesso praticamente da noite para o dia, Nesbo não teve dificuldade em adaptar-se à vida de escritor. Cada livro novo dele segue mais ou menos o mesmo processo: primeiro ele escreve uma sinopse de cinco páginas, depois uma sinopse de 20 páginas, que é seguida por um resumo extenso de 80 a cem páginas que inclui fragmentos chaves de diálogos, para ele se assegurar de ter captado os padrões de fala de seus personagens.

Em seguida, Nesbo escreve um primeiro rascunho completo do livro, e depois um segundo. Apenas então ele deixa que algumas poucas pessoas em quem confia leiam o livro e sugiram pequenas revisões. Depois disso, o livro está pronto e é esquecido. O único que ele releu foi "The Bat". "É porque foi meu primeiro", ele explica. "Parece bastante cru e fora de controle em algumas partes, e eu gosto disso."

Heiko Junge /Associated Press
Anders Breivik, o protagonista do "dia em que a Noruega perdeu a inocência", para escritor Jo Nesbo
Anders Breivik, o protagonista do "dia em que a Noruega perdeu a inocência", para escritor Jo Nesbo

É um indício raro de sentimento em alguém que, com essa exceção, parece dedicar-se apenas à vida e ao trabalho. As coisas acontecem, e você as supera. Como o massacre cometido por Anders Breivik. "Foi o dia em que a Noruega perdeu a inocência", diz Nesbo. "O dia em que nos tornamos como outros países que já passaram por tragédias semelhantes, o dia que vai nos assombrar por anos ainda. Mas ele precisa ser visto como o que foi. Foi um desastre isolado, perpetrado por um indivíduo que não poderia ter sido previsto; não foi um acontecimento político importante que tenha origens nos fundamentos de nossa sociedade."

Para os fãs de Nesbo, a preocupação mais imediata é se Harry Hole vai conseguir sair do fundo do esgoto. Nesbo tenta se esquivar por um instante, mas então cede. "Posso revelar que tenho mais planos para Harry, sim", ele revela.

"Você poderia dizer algo sobre eles? As coisas não poderiam piorar muito para Harry, certo?"

"Há uma lógica no universo de Harry. Seu futuro próximo parece sombrio. Depois as coisas vão piorar. Finalmente, ele vai diretamente para o inferno."

Nesbo não tem um pouco de pena de Harry?

"Gosto muito dele. Tenho alguns momentos felizes previstos para ele."

Quantos? Uma ou outra página esparsa?

"Hmmmm. Mas a vida é assim mesmo, não é? Não existem finais felizes."
Acho que Harry se contentaria com isso. É o que seus fãs certamente farão.

Tradução de CLARA ALLAIN.

 

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