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02/12/2012 - 08h00

Revendo Reverón - O Relâmpago Capturado

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WAGNER BARJA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por uma questão de singularidade fica difícil situar o conjunto da obra de Armando Reverón (1889-1954) no contexto geral da arte moderna do século 20.

As particularidades de sua excêntrica vida e complexa obra estão à margem, nas laterais dos movimentos modernistas e, principalmente, das tendências assimiladas das hegemônicas correntes vanguardistas, que predominaram e ditaram valores na cultura visual contemporânea.

Suas primeiras obras já se destacavam dentre outras, das vanguardas da América Latina, por concentrarem um estilo único e indissociável de sua marca registrada: a exacerbada pulsão experimental, que resultou em formas distintas e extremamente sofisticadas, com as quais expressou seus delírios num misto de supra sensorialidade plástica e extrema estranheza.

Pode-se dizer que sua intensa produção pictórica situou-se entre o pós-impressionismo e o início do abstracionismo e, que na década de 20, quando a alta modernidade se consolidara, após as rupturas ocorridas no ambiente das artes, Reverón exilou-se em Macuto, uma distante praia na costa central venezuelana.

Esse autoexílio o fez romper com toda tradição das escolas de pintura e caracterizou seu estilo único e inimitável. Toda a sua produção transformou-se numa peculiar forma de se fazer arte, dentre todas as conhecidas nesta América.

O Castillete, em Macuto, o casulo da borboleta era conhecido como casa/obra, por abrigar sua vivenda e ateliê. O local, recentemente destruído por uma tempestade, representou para Armando Reverón a auto-ruptura com as convenções sociais e artísticas. Seu habitat constituía-se de materiais rústicos: pedra, madeira e folhas e troncos de palmeiras, numa engenhosa arquitetura, diversa em recursos e técnicas artesanais. Formava um ambiente propício ao inspirado imaginário do múltiplo artista, que confeccionou objetos inusitados, que ora compunham cenários para a sua pintura... ora faziam parte de sua vivência cotidiana de isolamento.

Reverón viveu entre animais de estimação. Ensinou um macaco a pintar e este fazia parte de suas performances diante de turistas curiosos, alguns artistas e poucos amigos frequentadores daquele interessante mundo, instalado numa exuberante paisagem marítima caribenha.

O retiro de Reverón da sociedade caraquenha, obrigou-o, de certa forma, a produzir uma obra e um universo individual pontilhado de originalidade. Sua produção se orientou por um fazer contínuo e frenético, que forjou, tanto no ambiente do Castilete, quanto nos objetos diversos que o compunham, um conjunto de significados, que culminaram no grande diferencial desse artista e constituiu a sua rica cosmologia.

Pensar esse imenso e insondável universo de belezas naturais misturado ao ritual diário de artifícios plásticos e cênicos, na atualidade, nos ajuda a compreender a importante contribuição de Reverón não só como grande artista, mas como excêntrico indivíduo indissociável da sua arte.

Diagnosticado como esquizofrênico, Armando Reverón, com toda sua sagaz inteligência e força criativa deixou um legado, que ultrapassou as barreias da doença mental. Veio para desconstruir os sistemas lineares das artes. Transmitiu vigor em forma de linguagem, na sua abrupta forma de ver, entender e traduzir o mundo, o seu mundo. Hoje é um exemplo de superação e motivo de relevantes investigações.

Os enunciados de Reverón transmutados em linguagem plástica se caracterizam por paradigmas que balizam a arte atual em oposição ao clássico tradicional e, por isso, as suas proposições perpetuam-se inquietantes. Sempre em foco, a sua obra atravessou o século 20 e, ainda hoje propõe novidades.

O desequilíbrio em contraposição ao equilíbrio, a estranheza sobrepondo a beleza convencional, a ironia e a impermanência sustentadas pelo uso indiscriminado de materiais frágeis ou perecíveis, são modelos de uma estética recorrente e predominante nas artes contemporâneas atuais.

Estes pressupostos conceituais sempre marcaram as criações de Reverón. Desta forma, pode-se afirmar, sem o risco de exageros, que a obra desse artista foi concebida por uma mente brilhante e criativa, muito à frente do seu tempo.

O mundo particular de Reverón admitia objetos retirados de uma sinergia própria, que abriam uma fresta para um rico e denso imaginário do desconhecido, capaz de seduzir pelo apelo ao onírico e ao surreal.

Com restos de árvores criou a mobília para acomodar inesperados objetos, como o telefone que não tocava e não se comunicava, sintomático no premeditado isolamento do artista. A sanfona e a viola mudas, diversos adereços no jogo de cena de um ator que sempre interpretou a si mesmo. Coroas e máscaras feitas para aquele personagem, ele próprio, que mudava ao sabor do humor e da imaginação.

Suas famosas bonecas de pano, em tamanho natural, não revelavam o algo que existia de insondável na cena construída pelo artista. Expressivas aparições que compunham a fantasmática do Castillete e reforçavam teses sobre as questões que envolviam o artista com o universo do feminino.

Os inúmeros apetrechos de sua pintura: pinceis, bolças de armazenamento de espátulas e tintas compunham um tragicômico ritual do fazer pictórico. Antes de iniciar o processo da tintas sobre os suportes e, diante das modelos desnudas, Reverón apertava à própria cintura com uma cinta larga, sob a alegação de que, com esse aperto, separaria a parte profana do corpo, situada abaixo da cintura, de sua mente criativa.

Sua pintura capturou relâmpagos e tempestades na intensidade da luz solar do Caribe. Há uma luminosa cegueira implícita nas suas paisagens da fase branca. Como nas teorias de Goethe sobre a cegueira: ela não surge da escuridão, mas da extrema claridade. O Sol nos cegará, se o miramos fixa e demoradamente.

WAGNER BARJA é diretor do Museu Nacional do Conjunto Cultural da República e curador da mostra "Revendo Reverón - O Relâmpago Capturado". Este texto foi escrito para o catálogo da exposição.

 

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