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19/12/2010 - 08h00

Labirintos de Henry James

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MARCOS FLAMÍNIO PERES
DE SÃO PAULO

LER "OS EMBAIXADORES", de Henry James, é desfrutar de um romance de aventuras em que nada parece acontecer. O leitor não presencia grandes peripécias, o espaço pelo qual transita é quase todo concentrado na Paris de Montmartre e da Rive Gauche, com uma entrada aqui e ali no Museu do Louvre e na igreja de Notre Dame. Também não viaja no tempo, pois a ação se restringe ao período de algumas semanas.

Da mesma forma, a trama do livro, que tem sua primeira tradução lançada no Brasil (trad. Marcelo Pen, Cosac Naify, 602 págs., R$ 99), não tem nada de rocambolesco: o sensato Lambert Strether é enviado à Europa para "resgatar" Chadwick Newsome -supostamente tragado pelos encantos da Paris fin-de-siècle- e trazê-lo de volta à pequena e puritana Woolett, na Nova Inglaterra, para assumir os negócios da família.

E, no entanto, a transformação por que passará "nosso herói" será monumental. Aos 55 anos,"o pobre Strether", o "embaixador" do Novo Mundo, testemunha seu edifício de certezas pacientemente construído sofrer um colapso completo em poucas semanas.

"Nada lhe parecia mais estranho do que a consciência de que se lançava em uma aventura cujo sentido não se coadunava com seu passado."

Ao longo da "maravilhosa primavera parisiense", flanando através da Rue de la Paix, das Tulherias, cruzando o Sena e chegando ao Jardim de Luxemburgo, percebe-se em um entrelugar. Na desigual relação entre perdas e ganhos que passa a viver na capital francesa, suas verdades se esvaem, embora não ganhe nada em troca: "O palácio das recordações de Strether não estava mais lá [...], mas, sim, "o vazio irremediável que ali se instalou".

Nesse sentido, ele é um anti-Ulisses, à medida que aquilo que caracteriza o protagonista da epopeia homérica é justamente a imutabilidade; de retorno a Ítaca, Ulisses é o mesmo que partira tanto tempo antes.

Strether, ao contrário, é o homem que reelabora o sentido de sua história pessoal no curso de sua viagem. O modo como descreve a si mesmo é sintomático de sua fragmentação, que dará o tom de toda a obra: "Ruminava sentado ali sobre estranha lógica de descobrir-se assim tão livre. Sentia mover-se no mais estranho dos ares, sobre um terreno que não era dos mais estáveis".

Assim como outros grandes autores que iriam fixar o cânone moderno, Henry James (1843-1916) também cria seu "terreno" muito particular -sua cidade turbilhão, que tudo desagrega. Se James Joyce tem Dublin, Alfred Döblin tem Berlim, Marcel Proust tem Paris, James também possui seu devorador mito urbano, o "labirinto que [Strether] apenas começava a trilhar": "Seu maior desassossego parecia provir da assustadora impressão de que quase qualquer concessão a Paris ameaçava arruinar-lhe a autoridade. A vasta e cintilante Babilônia erguia-se diante dele como um imenso objeto iridescente".

Foi ela que provocara no jovem Chad sua "ruptura de identidade" e transformara o rude jovem de três anos atrás em um homem refinado. A "criatura disforme" brotada nas imensidões do Novo Mundo fora posta no "molde firme" pelas mãos de Madame de Vionnet, moradora da "velha Paris".

Contudo, para um romance de tão grande extensão, ficamos sabendo pouco dessa "metrópole descomunal". A razão é que, publicado em 1903, "Os Embaixadores" se distancia firmemente da herança realista (ainda que também dialogue com ela).

Não estamos mais na Paris quase topográfica de "O Pai Goriot" (1835) e "Ilusões Perdidas" (1837-43), de Balzac, ou mesmo de "A Educação Sentimental" (1869), de Flaubert. Ao contrário, a cidade e as relações que estabelece são subsumidas no olhar do personagem -e "sua imaginação reagia antes que pudesse interrompê-la".

A consciência extrema do ponto de vista como organizador da matéria ficcional é a marca de Henry James -tanto o autor quanto o crítico literário. Caso modelar é a novela "A Volta do Parafuso", releitura sofisticadíssima do romance gótico em que o terror é uma construção imaginária -logo, psicológica- de uma mente impressionável.

Talvez sua abordagem mais exaustiva do tema esteja em "Pelos Olhos de Maisie", relançado agora em tradução revista (Cia. das Letras, trad. Paulo Henriques Britto, 412 págs., R$ 26). Manipulada por pai e mãe, depois padrastos e madrastas de ocasião -em benefício próprio e contra o respectivo cônjuge-, a protagonista representa um ícone dos efeitos devastadores das famílias disfuncionais sobre a psique infantil. "Ela serviria a seus ódios e selaria suas vinganças."

Mas o que dá consistência a essa interpretação de natureza cultural é a elaboração da realidade na qual Maisie vive e circula de mão em mão. Os recortes de sentimentos e valores egoístas a que a menina é submetida por cada um dos adultos com quem convive -"estava diante de uma mudança constante"- são incorporados à forma narrativa como "o" ponto de vista, cambiante, de Maisie.

Já "Os Embaixadores", obra da fase madura, tem isso e muito mais e faz jus ao carinho que seu autor tinha por ele como protótipo do "romance perfeito".
A imaginação também leva Strether a reelaborar a realidade, mas transborda e contamina seus vários aspectos.

Assim, a vida concreta de Woolett, em que sempre existe uma "realidade última e irredutível", se opõe à sutileza e dubiedade das relações nos salões parisienses. A própria ideia de sociabilização não encontra eco na província estritamente dividida entre família e trabalho. E a vida produtiva da cidadezinha não se encaixa no "laissez-faire" não-produtivo de aristocratas e artistas.

A distinção de classe também está presente, pois depreende-se que Strether é um agregado da família Newsome. Dinheiro -"eis a raiz de todo o mal", reflete.
Por trás de tudo, a dicotomia fundamental entre Velho e Novo mundos. O próprio James, americano expatriado voluntariamente em Londres, se situava num entrelugar que seu personagem experiencia.

"Embaixadora" emblemática no livro é Miss Gostrey. "Sou um agente da repatriação. Quero repovoar nosso combalido país. Do contrário, que será dele? Quero desencorajar os outros. [...] Se [os expatriados] passarem por minhas mãos [...], mando-os de volta inteiramente gastos. Para que não voltem mais."

Waymarsh, amigo de Strether que passara pelas mãos de Miss Gostrey, forma um contraponto silencioso ao herói. "A Europa [...] falhara em transmitir-lhe a mensagem. [...] 'Não estou em sintonia em nenhum canto por aqui [...] Olhe... estou pronto para voltar'."

Mas talvez a figura mais poderosa neste romance coalhado de mulheres fortes seja Mrs. Newsome, aquela de quem todos falam, que ninguém vê, e que, no entanto, dita o ritmo da narrativa e dos movimentos dos personagens. "Ela está por trás de tudo; mas age com tal delicadeza e tato...!", afirma Strether.

Mas será justamente ele a romper com esse padrão e criar -no plano da vida e da forma romanesca- seu próprio ponto de vista.

A tradução cuidadosa apanha bem o estilo de James, que revira a sintaxe da língua inglesa para dar conta da complexidade das mudanças que Strether sofre -à semelhança do que Proust faria com a língua francesa duas décadas mais tarde, com "Em Busca do Tempo Perdido".

A bela edição em capa dura traz prefácio do autor e ensaio iluminador de Ian Watt (de "A Ascensão do Romance") -embora um lapso de revisão confunda, na contracapa, Madame de Vionnet e Mrs. Newsome.

Como todo grande escritor, James faz do estilo um mundo à parte, que exige de quem o lê um envolvimento sem o qual não "entra" na obra.

Para o leitor intermitente, abordar "Os Embaixadores" pode ser frustrante. Justamente por isso, é livro para ser enfrentado nas férias. Sol, praia, mar e tempo livre formam o conjunto perfeito para mergulhar neste romance de aventuras "interior".

 

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