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Thiago Amparo

Ação da Defensoria contra Magazine Luiza tem a mesma base legal do racismo reverso: nenhuma

Programas para aumentar liderança negra já são tendência no mercado

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Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos e coordenador do núcleo de justiça racial e direito na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Imagine se brancos ganhassem apenas 55,8% da renda de negros (pretos e pardos) no país. Imagine se brancos ocupassem apenas 5% dos conselhos de administração das empresas das 500 maiores empresas e 88% destas grandes empresas não possuíssem políticas afirmativas para brancos. Imagine que, após 300 anos de escravidão de brancos no país, estes ainda fossem discriminados em todas as esferas de sua vida.

O país descrito acima, pasmem, não existe; é tão ilusório quanto é o racismo reverso. Quer dizer, existe, mas para pretos e pardos. O que a empresa Magazine Luiza faz, ao propor um programa para trainees negros, é formular uma ação afirmativa –portanto, uma ação proporcional, específica e temporária– para atender o déficit racial na liderança da empresa.

Medidas como esta se tornaram praxe no meio empresarial. Empresas como Bayer adotam políticas similares. Amazon, General Motors e Goldman Sachs concordaram mês passado a expor seus dados sobre raça e gênero. Consultoria McKinsey aponta que, ao fazer tais políticas, empresas alavancam produtividade e inovação. O que se faz aqui é reverter a inércia que sempre beneficiou profissionais brancos e homens.

Não se engane: juridicamente, a ação proposta pelo defensor Jovino Bento Junior não para em pé. Entre uma citação de um blog olavista e um print de tuítes de Sergio Camargo, as mais de 56 páginas da petição esbanjam horrores e carecem de lei. Nesta terça-feira (6), Bento Junior, que é defensor público da União, entrou com uma ação contra o programa de trainee da empresa.

A começar pela escolha do tipo da ação. Chega a ser risível escolher um meio jurídico –ação civil pública– desenhado para proteger direitos de grupos vulneráveis para defender os direitos do grupo de trabalhadores brancos, já super-representados na liderança da empresa.

Usando expressões indecorosas passíveis de punição administrativa como “marketing de lacração”, o defensor defende o indefensável: o racismo reverso. Chega a quase defender este conceito, mas por racismo cordial se esquiva.

Ação confunde racismo (discriminação racial sistemática) com ação afirmativa (programas voltados a positivamente alavancar grupos historicamente discriminados). Como diria um juiz da Suprema Corte dos EUA, é o mesmo que não saber a diferença entre uma placa de “não ultrapasse” e um sinal de “bem-vindo”. O defensor não leu a convenção da ONU antirracismo, ratificada pelo Brasil na década de 1960, onde está claro que ações afirmativas “não serão consideradas discriminação racial” (Decreto 65.810/169, Artigo 1.4).

Outros fundamentos legais sustentam ações afirmativas como a da Magazine Luiza. A Constituição Federal assegura igualdade substantiva. A Lei 12.888/2010 (Estatuto de Igualdade Racial) prevê no seu artigo 39 a legalidade de “ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra (...) nas empresas e organizações privadas”. O Ministério Público do Trabalho já emitiu em 2018 e em 2020 notas técnicas reafirmando a legalidade de tais políticas.

Não é à toa que imensa parcela dos círculos jurídicos rejeitam os fundamentos da ação. Entre os colegas do defensor, a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais, o Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União e o próprio Defensor Público-Geral da União vociferaram contra a ação, apoiando medidas afirmativas como as da Magazine Luiza. Igualmente, a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, que reúne a nata dos melhores escritórios de advocacia do país, reafirmou em nota a legalidade de ações afirmativas.

Independência funcional deve ser exercida dentro das competências legais da instituição a que o defensor representa: caso queira fazer advocacia privada no cargo de defensor e combater políticas para grupos que sua instituição, por lei, jurou proteger, as portas da Defensoria deveriam ser a serventia da casa.

Num país marcado pelo racismo, pessoas brancas estão tão acostumadas a seus privilégios materiais e simbólicos ao ponto de chamá-los de direito. Um escrutínio mais próximo revela, no entanto, que tais privilégios não se passam de uma fina máscara que ações estapafúrdias como a da Defensoria Pública da União expõem, em todo o seu horror.

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