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Stephen Bush

Não existe essa coisa de 'nativo digital'

Tecnologia muda rápido demais para supormos que a próxima geração a entenderá completamente

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Stephen Bush
Financial Times

Chame isso de princípio de Abe Simpson. O patriarca do desenho animado, ao ouvir seu filho Homer dizer que não estava "com a coisa", respondeu: "Eu estava com a coisa, mas então mudaram o que era a coisa. Agora, o que eu tenho não é a coisa, e o que é parece estranho e assustador para mim". Então avisou ao filho: "Vai acontecer com você".

Vovô Abe estava certo. Quando o termo "nativo digital" foi cunhado, eu costumava ser um deles. Faço parte do grupo que cresceu na era da informática. Tenho uma memória longínqua do computador da minha mãe –um negócio branco e volumoso que rodava Paciência, Campo Minado e um punhado de jogos do MS-DOS– parecendo brevemente um intruso em nossa casa, mas não me lembro do tempo antes de ele chegar.

Do que eu me lembro é quando instalaram nossa banda larga, que me tornou uma das poucas pessoas em meu círculo social que não precisava ouvir as temidas palavras: "Saia do MSN Messenger, preciso fazer uma ligação".

Ilustração - Catarina Pignato

No entanto, o princípio Abe Simpson chegou até mim. Recentemente, participei de uma conversa a portas fechadas com especialistas e formuladores de políticas sobre inteligência artificial e os desafios que ela representa para os reguladores. Um dos participantes observou que, embora o desafio fosse "grande demais" para o atual grupo de reguladores, ele seria resolvido pela atual geração de nativos digitais.

Eu escutei, esperando descobrir algo sobre mim e por que eu estava bem posicionado para resolver esse problema. Em vez disso, percebi que não sou mais um nativo digital. Além do mais, o que é um nativo digital agora me parece estranho e assustador. Para mim, significava crescer na era após o advento do computador pessoal e quando os telefones celulares eram comuns. Agora, parece significar ter crescido numa era em que você tem acesso à internet 24 horas, quer queira quer não, e tudo, desde conspirações rebuscadas até pornografia violenta, é canalizado para o seu feed de rede social.

De certa forma, isso não é nada surpreendente. Embora eu tenha um celular desde o início da adolescência e um smartphone logo depois, cresci num momento em que meu acesso à internet era facilmente monitorado –algo que meus colegas e eu considerávamos um fato da vida. Tínhamos uma compreensão intuitiva da tecnologia melhor que a de nossos pais, mas eles ainda detinham os controles e, na maioria dos casos, o controle do único computador.

O que significa ser um nativo digital mudou drasticamente porque a definição de "digital" também mudou. E continuará mudando: uma criança que entre na escola pela primeira vez hoje terá apenas uma memória incompleta do mundo sem IA.

Em consequência, a ideia de natividade digital está se tornando menos, e não mais, valiosa. Houve um ponto em que a separação entre um nativo digital e um não nativo era clara o suficiente para ser útil. Mas até a distância entre mim –que uso computador desde que me lembro– e alguém que, por ser apenas cinco anos mais moço, teve um smartphone desde o início da adolescência, já é bastante grande. A distância entre nós dois e alguém que cresceu com um tablet desde que nasceu é ainda maior.

Além disso, não é apenas o hardware que está mudando. O software também. A tecnologia moderna é ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil de usar. Quando criança, eu conseguia configurar meu PlayStation sem ajuda –hoje isso acabaria com uma criança chorando e um console de jogos quebrado. Mas outros desenvolvimentos, não apenas em IA, significam que toda uma gama de tarefas de codificação outrora complexas está hoje ao alcance de pessoas que não distinguem seu Ascii de seu Cobol.

Portanto, a ideia de que uma próxima onda de nativos digitais será capaz de regular melhor, resolver questões políticas complicadas ou evitar os perigos com os quais lutamos é uma ilusão alarmante. A primeira geração de pais nativos digitais também é a primeira a dar smartphones a seus filhos desde a infância, decisão hoje frequentemente criticada por professores e especialistas. (E, eu acho, uma que é improvável que se repita.)

Os nativos digitais podem ter tido mais sucesso ao navegar no mundo do comércio eletrônico. Porém, há poucas evidências de que tenhamos sido melhores em regulamentar essas indústrias, talvez porque, assim como nossos antepassados, nosso sucesso esteja em construir um novo mundo que nós mesmos não entendemos totalmente.

A confusão que vem de fases de mudanças tecnológicas muito rápidas que superam o know-how da geração presente ainda não acabou. Se você estiver procurando novas ideias de produtos ou melhores maneiras de explorar as tecnologias existentes, a próxima onda de nativos digitais poderá ajudá-lo. Mas se você os estiver vendo como a solução para questões regulatórias ou políticas iminentes, lembre-se de que a regra de Abe Simpson chega para todos, mais cedo ou mais tarde.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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