Mulheres no futebol ficam isoladas mesmo em cargos fora de campo

Torneios femininos conquistam interesse recorde, mas esporte ainda é esmagadoramente dos homens

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Simon Kuper
Financial Times

Andreea Koenig, diretora do clube de futebol francês Racing Club de Lens, diz que muitas vezes em seu trabalho ela entra em salas com centenas de homens. Seus 25 anos como banqueira de investimentos a prepararam para isso.

"Significa que não sinto nenhum desconforto numa sala com 200 homens. Zero. Eu tenho um filtro embutido para linguagem insensível. Noventa e nove por cento dos gerentes de ativos com quem eu costumava fazer negócios eram homens."

Este deveria ser um momento de crescimento para as mulheres que trabalham no futebol. A Copa do Mundo feminina, que começou na Austrália e na Nova Zelândia em 20 de julho, deve ser o torneio de futebol feminino de maior destaque até agora.

Seleção brasileira comemora gol em estreia na Copa do Mundo Feminina, contra o Panamá, no estádio Hindmarsh Stadium, Adelaide, Austrália - Thais Magalhães - 24.jul.2023/CBF

Hannah Dingley se tornou a primeira mulher a comandar um time profissional masculino inglês, ao assumir o cargo no Forest Green Rovers, clube da quarta divisão, este mês –mas já foi substituída por um técnico masculino. E mais de 50 clubes ingleses assinaram o Código de Diversidade na Liderança da Associação de Futebol, que, entre outras coisas, estabelece metas para a contratação de treinadoras, executivas e outras profissionais fora de campo.

Mesmo que as mulheres causem mais impacto em campo, porém, as pessoas que comandam os jogos masculinos e femininos nas laterais e nos escritórios administrativos continuam sendo predominantemente homens. "Todo mundo diz que precisamos de mais mulheres no esporte, mas ainda não vi isso, pelo menos não em nível sênior", disse Koenig.

O desequilíbrio de gênero exato no esporte não é claro, diz Ebru Köksal, presidente da rede Women in Football (Mulheres no Futebol), porque "não sabemos quantas mulheres trabalham no futebol. Não temos dados sobre gerenciamento sênior, gerenciamento intermediário, dados de força de trabalho, ponto final". Ainda assim, ela oferece algumas estatísticas: "Nove por cento dos membros do conselho de clubes da Primeira Liga inglesa são mulheres. Nas federações nacionais, apenas 2% dos presidentes e CEOs são mulheres".

A líder feminina mais conhecida do futebol provavelmente ainda é Hannah Waddingham, que interpreta a proprietária do AFC Richmond, Rebecca Welton, na série de televisão Ted Lasso. Para 2021-22, uma meta para os signatários do código de diversidade da FA era que 30% das novas contratações na liderança sênior fossem mulheres; no entanto, a "média coletiva do futebol" foi de 17,9%. E isso no futebol inglês, cujo equilíbrio de gênero está "muito" à frente da Europa continental, observa Köksal.

As mulheres tendem a ficar isoladas em departamentos do clube, como recursos humanos, marketing ou logística. Raramente são contratadas para cargos geradores de receita, como diretora financeira ou treinadora, analista de desempenho e olheira. Poucas se tornam tomadoras de decisão. Enquanto "cerca de 27% dos trabalhadores no futebol profissional masculino são mulheres", esse número cai para 14% no quartil salarial mais alto, escreveu Amée Gill, da Universidade Durham, em 2019.

Lise Klaveness, presidenta da federação norueguesa de futebol, acredita que as mulheres tendem a não procurar cargos iniciais inseguros e mal pagos na indústria do futebol porque veem poucas perspectivas de progresso. Quando ela jogava profissionalmente, alguns de seus treinadores chegaram a cargos bem remunerados; as mulheres não. Por que elas sacrificariam fins de semana e noites para essa indústria que exige tanto se não esperassem recompensas futuras?

Então, como aumentar o emprego feminino no futebol masculino –onde está a grande maioria do dinheiro e dos empregos–, bem como no feminino?

O primeiro passo para tornar o futebol mais acolhedor para as mulheres é mudar sua cultura. "As culturas nessas organizações foram criadas muito antes de as mulheres existirem", diz Yvonne Harrison, executiva-chefe da Women in Football. Nesse sentido, o futebol se assemelha à indústria da construção, ou partes da engenharia.

Comentários sexistas e assédio sexual continuam comuns. Só recentemente os empregadores começaram a punir os infratores. O diretor de futebol do Ajax Amsterdam, Marc Overmars, saiu no ano passado depois de enviar o que o clube chamou de "uma série de mensagens inapropriadas para várias colegas do sexo feminino". Em fevereiro deste ano, o presidente da federação francesa, Noël Le Graët, renunciou depois que uma inspeção estadual o acusou de erros, incluindo "comportamento inadequado em relação às mulheres". E Harrison observa o abuso de Dingley nas redes sociais e em telefonemas de rádio após sua nomeação: "Senti que voltamos um pouco para a década de 1970".

Francesca Whitfield, chefe de planejamento de grupo do Manchester United, preocupa-se com a reação do público se ela aceitar um cargo importante: "Eles podem pensar que eu não sei tanto sobre futebol quanto um homem".

A exclusão de mulheres também acontece de forma não intencional. "Nenhuma mulher vai a um lugar cujo anúncio de emprego diz: 'Você está com fome de (...)?'. Toda a indústria tem um tom um pouco agressivo", diz Klaveness. Também não deu muita margem para funcionárias com responsabilidades familiares. Klaveness, que tem três filhos, mas viajou 200 dias no ano passado, aumenta a conscientização às vezes levando os filhos para eventos de trabalho.

Mesmo alguns dos executivos mais jovens e bem-intencionados que assumem o comando dos clubes não conseguem ver essas formas de exclusão, em parte porque não estão sendo informados. Dois terços das afiliadas do Women in Football disseram em uma pesquisa que sofreram discriminação de gênero no futebol, mas apenas 12% dos incidentes foram relatados e, muitas vezes, descartados como "brincadeira". Isso pode mudar com mais mulheres em cargos seniores.

Outro mecanismo de exclusão é a tradição do futebol de contratar sem anunciar vagas. Harrison diz: "As mulheres não têm as mesmas oportunidades de descobrir novos empregos. Elas não estão nessas redes fechadas". A nova plataforma online de carreiras do futebol inglês, lançada em 2021, com mais de 2.600 vagas publicadas nos primeiros 18 meses, pode ajudar a mudar isso.

A grande questão, dado que a mudança orgânica tem sido tão lenta, é se o futebol precisa de cotas rígidas para a contratação de mulheres. A maioria das mulheres no esporte expressa cautela sobre isso. "Não acho que as cotas sejam a solução para nada. Sou uma pessoa competitiva –todo mundo no futebol é", diz Klaveness. "Claro que você não quer trabalhar com pessoas que discutem política de gênero o tempo todo. É exaustivo."

Mas tanto ela quanto Whitfield podem agora ver o interesse das cotas, embora apenas como uma de uma série de políticas pró-mulheres.

Klaveness observa que, em 2003, a Noruega se tornou o primeiro país a estabelecer uma cota de 40% para mulheres em conselhos de empresas listadas em Bolsa. Isso deu início a uma tendência internacional. Quando mais mulheres entram numa indústria, sua presença se torna banal, acrescenta ela. E se uma mulher falhar no futebol –como os treinadores do sexo masculino falham todos os dias–, isso não manchará todas as mulheres.

Para contratar para cargos de alto escalão, entretanto, é preciso haver um fluxo de mulheres que adquiriram experiência em cargos menores.

Dingley, por exemplo, liderou uma academia de juniores antes de se tornar gerente. "Eu não apenas arrasei hoje e escolhi treinar um time masculino," ela comenta.

O futebol precisa criar programas para preencher esse canal, diz Klaveness. "Fui diretora-técnica da federação durante quatro anos e tentei contratar treinadoras nas seleções de base masculinas. Quase ninguém se inscreveu."

Klaveness incentiva o futebol a cultivar mulheres que em três ou cinco anos poderão se tornar, digamos, treinadoras do time masculino do Manchester United ou diretoras esportivas de um grande clube. "Se você acha que isso não é possível, por que não acha? É o que podemos fazer no futebol: desenvolvemos pessoas, desenvolvemos habilidades."

Um aspecto esperançoso é que o futebol tradicionalmente contrata ex-jogadoras, então as equipes femininas de alto nível de hoje devem preencher mais funções de treinador e bastidores no futuro.

Outro sinal positivo é que as mulheres que trabalham na indústria, pelo menos na Inglaterra, costumam relatar boas experiências. Setenta e oito por cento das sócias do Women in Football dizem que "se sentem apoiadas" por seus colegas, e 66%, por seus empregadores.

No Manchester United, diz Whitfield, "estou cercada por homens que realmente não veem gênero. Fui promovida por homens para quem trabalhei. É um campo de jogo muito nivelado para mim".

Mariela Nisotaki, chefe de talentos emergentes no Norwich City, avalia que ela é apenas uma das três olheiras que trabalham para clubes masculinos europeus. No entanto, suas experiências foram "mais positivas do que negativas", disse. "As pessoas ficam curiosas: 'Como você está trabalhando no futebol?' Talvez eles te admirem mais, porque você fez isso sendo mulher."

Quando outras mulheres pedem conselhos sobre como trabalhar no futebol, Nisotaki diz que o momento é bom: "Há muita promoção de mulheres agora".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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