'Vendi com o cérebro, não com o coração', diz antigo dono do Playcenter

Pioneiro no mercado brasileiro, Marcelo Gutglas diz acreditar que a Cacau Show vai manter o legado do parque

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São Paulo

Marcelo Gutglas, 83, estava um pouco perdido nesta quarta-feira (21). Depois de 50 anos de trabalho ininterruptos, como é não ter nada para fazer?

"Eu saí do país. Ainda não deu para pensar nisso. Trabalhei a vida toda. Não sei como um aposentado se comporta", afirma.

Nascido na Bolívia, o engenheiro eletrônico formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, viajou para Montevidéu, capital uruguaia, horas após ter vendido o Grupo Playcenter para a Cacau Show.

Em negociação de valor não revelado, abriu mão da empresa dona de uma rede de parques indoors e que tem como bem precioso a marca.

Marcelo Gutglas em brinquedo do Playcenter em 2010, dois anos antes do fechamento do parque
Marcelo Gutglas em brinquedo do Playcenter em 2010, dois anos antes do fechamento do parque - Eduardo Knapp-12.abr.10/Folhapress

O nome Playcenter está ligado ao parque de diversões que chegou a ter 130 mil metros quadrados na marginal Tietê, na capital paulista. Por algum tempo, foi o maior da América Latina. Com problemas financeiros, fechou em 2012.

Desde a abertura, em 1973, recebeu, em média, cerca de 1,6 milhão de pessoas por ano.

Os planos de Alexandre Costa, CEO da Cacau Show, são investir no ramo do entretenimento e fazer a ligação entre a experiência sensorial do chocolate e o parque de diversões. Em entrevista à Folha, ele disse que a volta do Playcenter se trata de um plano de longo prazo, mas "é um sonho".

Embora diga que a negociação foi rápida para um grupo que, segundo pessoas do mercado, fatura mais de R$ 100 milhões por ano, Gutglas confessa ter hesitado. Mais de uma vez, sentiu receio em continuar com as conversas que o levariam a se desfazer da maior realização profissional de sua vida.

"Vacilei, sim. Algumas vezes. Eu vendi o Playcenter com o cérebro, não com o coração."

Ele admite que poderia ser um bom momento para continuar no mercado. Vê com otimismo a perspectiva para parques como os que o grupo já tem, apesar dos custos considerados altos.

"É um setor que vai crescer. O Brasil tem todas as características necessárias para isso. Há o número de habitantes, o jeito alegre do brasileiro, que gosta de se divertir e estar em ambientes alegres. Estão acontecendo muitos investimentos em parques no país", diz.

Gutglas apenas não poderia fazer renascer um parque ao ar livre como era o Playcenter. O investimento necessário seria astronômico, assegura. Também haveria a necessidade de obter diferentes licenças para operar, inclusive ambientais. Algo que não existia na década de 1970. Alexandre Costa garantiu-lhe que vai cuidar de tudo isso.

O veterano empresário fez também parte do projeto que implementou em 1999 o Hopi Hari, complexo de entretenimento que está na Rodovia dos Bandeirantes, em Vinhedo, no interior do estado.

Ele ressalta que a aposentadoria não será completa. Vai atuar como consultor de Costa no novo parque que pretende construir. O próprio CEO da Cacau Show diz contar com a expertise dos funcionários mais antigos do Playcenter para isso. Rogê, enteado de Gutglas que trabalha há 35 anos no grupo, será um deles.

"O sonho do Alê [Alexandre] é construir um grande parque temático e é algo que ele preza muito. Pelo que conheci dele, quando tem um sonho, vai atrás. Um dos motivos para a venda foi o comprador. Tenho certeza de que vai continuar o legado que deixei e seguir com a marca", acredita.

É um legado que nasceu do acaso. O trabalho de conclusão de curso de Marcelo Gutglas, na faculdade de engenharia, foi projetar e construir uma vitrola que tocava músicas com a colocação de fichas de chumbo. Ele criou a primeira jukebox do Brasil, mesmo sem saber.

Era tudo artesanal e o ainda estudante colocou a sua obra no boliche de um amigo. O sucesso fez com que pensasse: aquilo poderia dar dinheiro. Construiu 12 e instalou em bares e restaurantes. Tinha de fazer manutenção de todas e fabricava até as fichas.

"Era um trabalho que durava 24 horas por dia", diz.

Ele foi o pioneiro também na abertura de fliperamas no país. Um amigo lhe apresentou o brinquedo em que hastes de plástico, acionadas por dois botões laterais, impulsionavam bolas de metal. Gutglas foi aos Estados Unidos e obteve crédito para comprar 30 máquinas. Na esquina da avenida São João com a Ipiranga, em São Paulo, abriu a primeira loja de entretenimento eletrônico.

Algum tempo depois, em Nápoles, na Itália, conheceu um empresário que lhe sugeriu investir em parque de diversões.

"Importei alguns brinquedos, inclusive uma montanha-russa de ferro que não havia no Brasil. Foi um sucesso tão grande que ela tinha de operar dia e noite, sem interrupção."

Marcelo Gutglas cumprimenta Alexandre Costa, CEO da Cacau Show, após anúncio da venda do Playcenter
Marcelo Gutglas cumprimenta Alexandre Costa, CEO da Cacau Show, após anúncio da venda do Playcenter - Reprodução/@playcenterfamilyoficial no Instagram

Gutglas começou a fazer a matemática. Se ele cobrava US$ 1 por pessoa, ganhava US$ 8 a cada viagem. Valia a pena investir mais. Vendeu os fliperamas e comprou mais brinquedos. Um deles, um tobogã chamado Playcenter, que pertencia ao empresário Ricardo Amaral.

Estava definido o nome do parque que meses depois ele abriria na marginal Tietê.

"Naquela época, ninguém pensava naquela região. Só queriam saber da marginal Pinheiros. Além de ser um tamanho razoável, o preço do aluguel era compatível e começamos com 30 mil metros quadrados. Chegaram a me oferecer para comprar [o terreno] por US$ 100 mil. Mas uma montanha-russa nova também custava US$ 100 mil. Optei pelo brinquedo. Não sei se fiz certo", relembra.

Um dos motivos para o colapso financeiro do parque, décadas depois, foi o aumento do aluguel na área em que estava instalado.

Gutglas deixou de pensar nesse assunto. Só voltou a refletir sobre isso quando vender o Grupo Playcenter passou a ser uma possibilidade real. Também não quer, por enquanto, focar na aposentadoria que não sabe como será.

"Fica a memória dos 40 anos de Playcenter, dos 60 milhões de visitantes, da minha vivência e do carinho que ainda recebo depois de tantos anos. O Playcenter era uma família feliz. Isso me deixa lisonjeado e com certa nostalgia. Foi um ciclo da minha vida. Mas acabou."

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