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Marcos Lisboa

Disputa por terras e barbárie

Disputa por terras valorizadas em grandes cidades são tipo de violência que passa longe dos olhos

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Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

O desdobramento da investigação do homicídio de Marielle Franco indica que a motivação seria a disputa por terras urbanas. A vereadora defenderia utilizar as áreas para assentamentos de pessoas de baixa renda. Os acusados pelo crime, por outro lado, queriam as terras para acomodar seus interesses.

Até o momento, aparentemente, a investigação decorre de delações premiadas.

Mas o recurso à violência e à brutalidade na disputa por terras urbanas, sobretudo privadas, não deveria ser surpresa. A pesquisa com microdados indica que atos de violência aumentam quando terras urbanas em litígio se valorizam.

Vista aérea da favela de Paraisópolis - Folhapress

Rafael Pucci, no artigo "To Burn a Slum: Urban Land Conflict and the Use of Arson Against Favelas", analisou a ocorrência de incêndios criminosos como instrumento para expulsar moradores e garantir a posse de terras em áreas da cidade de São Paulo. Ele utiliza dados de geolocalização, identificando favelas, incêndios e preço das terras entre 2001 e 2016.

Ainda que não exista prova contundente de crime, existe evidência de que muitos dos incêndios foram provocados. E esses incêndios estão associados à valorização de terras privadas ocupadas por favelas.

Pucci realiza vários testes estatísticos. Inicialmente, ele compara a probabilidade de incêndios em diversas microrregiões da cidade de São Paulo controlando por diversas variáveis, como tendências prévias de ocorrência de incêndios, tempo de ocupação anterior à valorização das terras, densidade da região e infraestrutura, além da interação entre valorização das terras e a natureza da propriedade (pública ou privada).

Os testes indicam que a probabilidade de incêndio aumenta substancialmente nas terras privadas mais valorizadas e ocupadas por favelas.

A hipótese subjacente é que nessas terras em disputa entre seus proprietários e os ocupantes, a tendência do uso da força, como incêndios criminosos, seria um instrumento brutal adotado para afastar os moradores, quando as terras se valorizam significativamente.

Na ausência de um Estado de Direito que garanta os direitos de propriedade, faça a mediação dos interesses conflitantes e puna crimes, como provocar incêndios, a disputa resulta em barbárie.

As estatísticas corroboram sua hipótese. Os incêndios tendem a ocorrer nas áreas privadas mais valorizadas ocupadas por favelas.

Em seguida, Pucci realiza um teste alternativo. Ele utiliza uma técnica conhecida como diferenças em diferenças para testar se a valorização das terras por alguma política pública que valorize uma região estaria associada a maior ocorrência de incêndios.

Ele se vale de um caso específico. Em 2004, o município de São Paulo iniciou leilões para permitir aos incorporadores construir acima do limite do zoneamento em certa região. Além disso, os recursos obtidos seriam utilizados para melhorar a infraestrutura local.

Ele compara a ocorrência de incêndios nas favelas dentro da região beneficiada com as que estão próximas, mas fora da área de intervenção pública.

Mais uma vez, os testes estatísticos indicam que as favelas em terrenos privados tendem a apresentar uma frequência significativamente maior de ocorrência de incêndios.

Esses resultados são robustos à introdução de diversos controles. E estão em linha com os obtidos no primeiro teste estatístico. Na medida em que terras ocupadas por favelas se valorizam, os incêndios, que teriam como objetivo deslocar seus moradores, tendem a aumentar. E isso ocorre nas regiões em que grupos privados podem se beneficiar do controle das terras valorizadas, uma vez desalojadas as favelas.

Os testes estatísticos indicam que existe uma certa valorização mínima das terras que induziria a ocorrência de incêndios criminosos.

Há muito que se sabe das violentas disputas por terras no campo. O artigo de Pucci levanta diversos indícios de que problema similar ocorre nas cidades.

O problema de violência e a incapacidade do Estado em garantir o cumprimento das leis não está restrito à disputa por terras.

Leila Pereira e Rafael Pucci já haviam apontado um fenômeno semelhante na Amazônia, no artigo "A Tale of Gold and Blood: The Consequeces of Market Deregulation on Local Violence". Eles mostram, utilizando técnicas estatísticas semelhantes, que os homicídios em terras de preservação ambiental e indígenas, onde existem jazidas de ouro, teria aumentado significativamente depois da aprovação do aditivo da "Boa Fé", em 2013.

A Legislação proíbe o garimpo nessas regiões, mas esse aditivo estabeleceu que os compradores deveriam assumir que o ouro comercializado viria de garimpos legais, mesmo na ausência de qualquer prova de origem. Isso teria incentivado o garimpo ilegal, inevitavelmente resultado em conflitos entre quadrilhas locais e moradores.

No último ano, depois de compreendida a devastação que esse aditivo provocou na região, como o assassinato de muitos yanomamis, o Judiciário e o Poder Executivo começaram a tomar providências para coibir o garimpo ilegal.

Antes disso, Ariaster Chimeli e Rodrigo Soares, no artigo "The Use of Violence in Ilegal Markets: Evidence from Mahogany Trade in Brazilian Amazon", tinham documentado um fenômeno. Após a proibição da extração de Mogno na Amazônia, a exploração da madeira continuou de forma ilegal, com aumento significativo dos homicídios.

Os testes estatísticos analisam o percentual de homicídios em microrregiões, algumas com Mogno, outras não, antes e depois da legislação. Os dados indicam como a norma legal de proibição em conjunto com a pouca capacidade do Estado em garantir o cumprimento da lei a causa do aumento da violência.

A violência no Brasil vai muito além das tragédias que dominam as manchetes de jornal. A aprovação de normas legais sem a análise técnica dos seus efeitos colaterais, em conjunto com a pouca capacidade do Estado em garantir a lei e mediar conflitos, é parte do caldo de cultura da violência entranhada no nosso cotidiano.

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