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Sob Milei, argentinos atravessam fronteira com Chile para fazer compras

Consumidores buscam de laptops e calças a pneus de carro na tentativa de fazer dinheiro render mais

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Kevin Simauchi Ignacio Olivera Doll
Bloomberg

O ônibus chegou a Uspallata, uma vila remota nas altas montanhas dos Andes, pouco depois das 2h da manhã e parou. Dentro estavam 30 argentinos. Eles tinham grossos maços de dinheiro enfiados nos bolsos e malas grandes e vazias guardadas sob seus pés.

As malas seriam rapidamente preenchidas —com laptops, calças jeans, roupas íntimas, toalhas, frigideiras, garfos, colheres, facas, qualquer coisa que pudesse ser retirada freneticamente das prateleiras das lojas— assim que os oficiais de fronteira abrissem o passo coberto de neve que conecta o oeste da Argentina ao Chile. No entanto, isso não aconteceria por horas. Então os argentinos esperaram, inquietos, em um posto de gasolina à beira da estrada na escuridão gélida antes do amanhecer, aguardando a autorização para ir às compras.

Cliente compra bebida em mercado de Santiago
Cliente compra bebida em mercado de Santiago - Victor Ruiz Caballero/NYT

"Estou ansiosa para ir às lojas." Essa era Maria Laura Bustos, uma das primeiras a descer do ônibus quando finalmente chegou a Santiago 11 horas depois. Ela veio com sua filha e uma lista de compras tão terrivelmente longa que sabia que não teria chance de comprar tudo nas 23 horas que tinha antes do ônibus voltar para a Argentina.

Para milhares de argentinos, o Chile se tornou o novo centro de compras preferido. Eles estão cruzando a fronteira em números sem precedentes, comprando freneticamente e destacando, no processo, um desenvolvimento alarmante para o presidente Javier Milei e seus assessores em Buenos Aires. "O peso", diz Fernando Losada, diretor administrativo da Oppenheimer & Co., "está supervalorizado."

É tão forte em relação a outras moedas, após a inflação ser considerada, que está prejudicando os fluxos comerciais e de investimento e colocando pressão sobre Milei para desvalorizar a taxa de câmbio pela segunda vez desde que assumiu o cargo em dezembro. A ideia é anátema para ele. A promessa central de sua campanha era acabar com a inflação desenfreada, uma maldição que assola a Argentina há muito tempo, e uma desvalorização faria os preços dispararem novamente e desfaria grande parte dos modestos ganhos que sua administração alcançou.

À primeira vista, é claro, é difícil conceber o peso como uma moeda forte. Ele enfraquece 2% a cada mês em relação ao dólar no mercado oficial —um declínio gradual cuidadosamente orquestrado por tecnocratas do governo— depois de ter caído mais de 50% quando Milei o desvalorizou em dezembro. Em mercados menos regulamentados, o peso também tem caído nas últimas semanas.

Sua força, ou supervalorização como Losada e outros veem, decorre do fato de que a inflação na Argentina, embora desacelerando, permanece alta. Desde a desvalorização, os preços ao consumidor dispararam mais de 100%. E a taxa de inflação mensal ainda está acima de 4%, bem acima do ritmo de queda do peso.

Tudo isso está tornando os produtos produzidos no exterior mais baratos para os argentinos. À medida que seus salários se equiparam à inflação, cada pagamento lhes dá mais dólares para gastar. Mas como o país há muito tempo tem uma série de tarifas proibitivas em vigor —elas chegam a 35% em alguns produtos— a maioria dos argentinos não compra itens importados de alto valor no mercado local.

Assim, em momentos como este, quando de repente têm poder de compra extra em dólares, eles levam esse dinheiro para o Chile, que tem tarifas muito mais baixas e um mercado varejista muito mais competitivo, e fazem compras de importados lá.

Smartphones são um grande atrativo. Assim como consoles de jogos e tablets. Todos os eletrônicos realmente. Um laptop era a prioridade número 1 para Bustos. Ela e sua filha correram para um grande shopping em Santiago, onde compraram um Lenovo por cerca de US$ 620. Na Argentina, um modelo similar custa mais de US$ 1.000.

Uma vez no shopping, elas continuaram a encher rapidamente o carrinho: aveia, jogos americanos, toalhas de mão, lençóis, calças, shorts, camisetas, moletons.

Muitas das roupas eram da H&M. Executivos da cadeia de fast-fashion ficaram surpresos com o número de argentinos fazendo compras em suas 28 lojas chilenas este ano. Tanto que começaram a ajustar seus horários de funcionamento —chamando funcionários extras— para feriados argentinos, em vez de chilenos.

José Manuel Castillo, que supervisiona as vendas da H&M no Chile, Peru e Uruguai, diz que os argentinos são fáceis de identificar: são aqueles que arrastam malas vazias pelos corredores. Ele estima que o aumento nas vendas para argentinos neste ano seja de cerca de 200%. "Todo mês, há um novo recorde."

Castillo viu crescimentos semelhantes no consumo transfronteiriço ao longo da última década, mas nunca, ele diz, um que decolou tão rapidamente. Isso ecoa a preocupação expressa por muitos economistas. Claro, o peso já foi forte em anos anteriores e os compradores argentinos têm se dirigido ao Chile —e, por falar nisso, também ao Uruguai, ao Brasil e até aos EUA—, mas é a magnitude e a velocidade da oscilação da taxa de câmbio agora que os preocupa.

"A apreciação real da taxa de câmbio tem sido muito mais rápida do que em episódios anteriores", diz Alberto Ades, diretor da NWI Management, uma empresa de consultoria de investimentos sediada em Nova York.

Ades reconhece que o peso já foi, por algumas medidas, mais forte em outras ocasiões do que é agora.

O problema, diz ele, é que a economia argentina hoje é muito menos robusta e resiliente do que era em décadas anteriores. A produtividade dos trabalhadores é menor e o estoque de reservas em moeda forte do país também é criticamente menor. O plano de Milei para reabastecer as reservas estagnou nas últimas semanas. "Então a taxa de câmbio de equilíbrio tem que ser mais fraca hoje", diz Ades.

Milei e seu porta-voz não responderam aos pedidos de comentário. Ele e seus principais assessores têm dito repetidamente em público, no entanto, que não veem necessidade de desvalorizar o peso.

Do lado chileno da fronteira, a estreita rodovia mergulha rapidamente enquanto serpenteia pelas montanhas. São quase 8.000 pés de descida —em apenas duas horas— até Los Andes, a primeira cidade importante no caminho para Santiago. Aqui, Jonathan Santibanez está desfrutando de um boom nos negócios.

Santibanez administra uma oficina de automóveis especializada em troca de pneus. Normalmente, diz ele, os chilenos representam cerca de dois terços de seus clientes. No entanto, neste ano, há dias em que a grande maioria dos carros alinhados do lado de fora de sua oficina —cerca de 80% ou mais— tem placas argentinas.

É uma viagem angustiante apenas para trocar um pneu. Mas Santibanez cobra cerca de 40% a menos do que as oficinas em Mendoza, Argentina. Um novo conjunto de pneus Dunlop para um sedã Peugeot, por exemplo, custa cerca de US$ 430 em seu estabelecimento. Em Mendoza, custaria mais de US$ 600.

A maioria dos argentinos que fazem a viagem para o Chile de carro ou ônibus são da região de Mendoza. É a cidade mais próxima da fronteira.

O número de viajantes cruzando para o Chile por esse passo de montanha aumentou mais de 100% em março, abril e maio para 225.000 antes que tempestades de neve bloqueassem o tráfego por semanas em junho. Operadores de passeios de ônibus estão correndo para adicionar mais viagens. E agências de viagens estão surgindo para oferecer pacotes para compradores. A viagem de uma noite —a que Bustos escolheu— é a mais popular.

Bustos diz que irá novamente em breve para comprar os itens que não teve tempo de adquirir: uma furadeira elétrica DeWalt para o marido, calças de jogging Nike para o filho, tênis Adidas Samba para a filha.

Gabriela Funes está planejando uma segunda viagem também. Ela gastou rapidamente os US$ 600 que trouxe neste mês. "Gastei até o último centavo." Da próxima vez, ela diz que fará a viagem em seu próprio carro. Ela quer o espaço extra para itens mais volumosos e, além disso, diz que fará compras de supermercado lá também. Ela vai encher o porta-malas com latas de atum, mexilhões, barras de chocolate, iogurte —praticamente tudo, ela calcula, exceto leite e ovos.

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