YouTube abriga 3.500 vídeos de propaganda enganosa de 'tigrinho' e caça-níqueis online

Portaria da Fazenda define responsabilidade jurídica de anunciantes e normas de jogo responsável, desrespeitadas na plataforma

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São Paulo

A portaria da Fazenda desta quinta-feira (1º), que aumentará responsabilidade dos envolvidos em propaganda de jogos de azar, vem a público depois de redes sociais já estarem infestadas de vídeos divulgando as apostas.

Novo levantamento da Folha mostra milhares de vídeos no YouTube com roteiros parecidos que fazem propagandas positivas para jogos de cassino online.

Supostos robôs que usam IA para prever resultados, plataformas "bugadas" que dão mais chances ao apostador, horários secretos para melhores lances e dicas de inteligência emocional para gerir bancas são repetidos à exaustão em mais de 3.500 vídeos encontrados pela reportagem.

Eles foram publicados nos sete primeiros meses deste ano, após a aprovação da lei que abriu caminho para a regularização dos caça-níqueis virtuais.

Captura de tela que mostra uma sequência de vídeos em um canal do YouTube. Cada vídeo apresenta interface de jogos de cassino online, com cores fortes, imagens de roletas e escritos relatando ganhos das apostas.
Jogo do tigrinho e caça-níveis se espalham pelo YouTube - Reprodução/YouTube

Os dados foram extraídos com auxílio de automação e depois passaram por uma análise amostral, feita com inteligência artificial. Os resultados tiveram revisão e checagem humana.

Especialistas alertam que, em jogos de cassino online, não existem estratégias ou sistemas que comprovadamente garantam as chances de ganho.

Os vídeos muitas vezes são pano de fundo para a divulgação de links de programas de afiliados. Neste negócio, a pessoa que publica o endereço de determinada casa de apostas recebe uma parte do dinheiro perdido pelos apostadores.

Os vídeos analisados violam as regras de jogo responsável publicadas nesta quinta-feira. Associam sucesso no jogo a habilidade, fazem propaganda enganosa de ganhos, promovem o "jogo do tigrinho" e semelhantes como alternativa de investimento e não trazem os alertas de que apostas são vedadas para menores de idade.

Além disso, o marketing de afiliados é o ramo da publicidade que, hoje, concentra o maior número de queixas no Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária).

O YouTube proíbe em suas normas a divulgação de apostas sem autorização prévia, embora existam milhares de links de afiliados circulando nos vídeos encontrados.

"Todas as grandes mudanças no ritmo de moderação que vimos se deu por questões políticas ou de regulamentação. Se somos capazes de encontrar vídeos que ferem a legislação com tanta facilidade, então o [dono do YouTube] Google, uma das maiores empresas do mundo, que emprega milhares dos melhores programadores, também consegue", diz Guilherme Felitti, sócio da Novelo Data.

Procurado, o YouTube afirmou que usa uma combinação de pessoas e aprendizado de máquina para identificar e remover em escala conteúdo que viole regras da rede.

"Somente de janeiro a março de 2024 foram removidos 8.295.304 vídeos da plataforma. A detecção automatizada de conteúdo em desacordo com as diretrizes foi de 96%, com 6.861.224 dos vídeos removidos atingindo 10 ou menos visualizações", diz a rede.

De acordo com a norma do governo que passa a valer em 2025, empresas que ofereçam serviço de publicidade na internet —como as redes sociais, plataformas de streaming e buscadores— terão de excluir anúncios, após notificação de irregularidade pela Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA). Provedores de internet também deverão bloquear sites ou excluir aplicativos, mediante notificação.

Será a obrigação da secretaria manter um canal de denúncias e promover fiscalizações ativas, com auxílio das autoridades, se for necessário.

No mercado regulado, as casas de apostas terão responsabilidade jurídica pelo cumprimento das regras e estarão sob fiscalização da SPA, ligada à Fazenda. Responderão legalmente também pela mensagem de seus afiliados —espécie de revendedores terceirizados da marca.

Influenciadores que divulgarem as casas de apostas compartilharão da responsabilidade.

A Fazenda espera coibir a propaganda agressiva ao responsabilizar os diferentes atores na cadeia de publicidade.

Segundo as novas regras, toda publicidade sobre apostas deverá seguir as normas de jogo responsável e adotar linguagem clara, que destaque a proteção dos menores de idade.

Também ficará proibida a sugestão de obtenção de lucro fácil, frases convocatórias, estabeleça elo entre sucesso pessoal e financeiro e associadas a informações enganosas.

Embora o MCI (Marco Civil da Internet) determine a obrigatoriedade de remoção de conteúdo apenas em caso de decisão judicial, o advogado André Santa Ritta, sócio do escritório Pinheiro Neto, considera que a possibilidade de remoção via ato administrativo criada na regulação das apostas é legal.

"As normas do Ministério da Fazenda devem prevalecer sobre uma norma genérica do Marco Civil", diz.

A concentração das decisões de notificação da SPA dá mais segurança às plataformas, segundo Paulo Rená da Silva Santarém, pesquisador do IRIS (Instituto de Referência em Internet e Sociedade).

"É uma decisão administrativa de origem bastante concentrada, e não uma notificação de usuário, empresa concorrente, Ministério Público ou delegado", diz.

Em julho, a Folha mostrou que 2.217 anúncios pagos circularam em Instagram, Facebook e WhatsApp com menções às palavras "tigrinho" e "Fortune Tiger" nos 20 primeiros dias de junho. Parte das campanhas era recorrente e estava no ar desde o início do ano. Os dados constavam na biblioteca e anúncios da Meta.

Além de links de afiliados, havia endereços de grupos de promoção de apostas no Telegram e no WhatsApp e contas de mais afiliados no Instagram. O padrão caracteriza "comportamento coordenado inautêntico" —quando um grupo de contas se mobiliza para manipular o algoritmo e impulsionar a atenção a determinado tema—, o que é proibido pela Meta.

Procurada, a Meta afirmou que não iria comentar a Portaria do Ministério da Fazenda. Em seus termos de uso, a Meta afirma exigir que os anunciantes solicitem autorização para fazer propaganda de jogos de azar.

Questionada, em junho, sobre possíveis furos na moderação, a Meta disse trabalhar "muito" para limitar a disseminação de spam no Facebook e no Instagram, porque não permite conteúdos que possam enganar os usuários.

O TikTok também não quis comentar a medida da Fazenda, mas proíbe que o acesso e a promoção a jogos de azar sejam estimulados dentro da plataforma.

Na plataforma, porém, é fácil encontrar vídeos que ensinam supostas estratégias de vitória garantida no caça-níqueis.

O Google, que também trabalha com anúncios, também não quis comentar. O buscador, assim como sua subsidiária YouTube, proíbe a divulgação de links de plataformas de aposta não autorizadas.

A popularização dos jogos e riscos correlatos a isso criam necessidade de uma tutela jurídica especial, como a para idosos, crianças e pessoas em situação de superendividamento, de acordo com Alexandre Jabra, advogado especialista em direito do consumidor do escritório Trench Rossi Watanabe.

"A legislação vai na mesma linha do que alguns pontos já previstos no Código de Defesa do Consumidor", diz.

Rená, do IRIS, também mostra preocupação.

"O vício pode levar a problemas individuais e coletivos, de saúde pública. A percepção de que, pelo menos no papel, a regulamentação se mostra suficiente para imaginar que a sociedade brasileira lidará com essa modalidade de jogos online de forma responsável. Resta ver na prática", diz.

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