Lágrimas se misturam ao entulho nos escombros de cidades gêmeas na Síria

Crédito: Hassan Ammar/Associated Press Carro passa em meio aos destroços de Zabadani, cidade assediada por cinco anos de ataques
Carro passa em meio aos destroços de Zabadani, cidade assediada por cinco anos de ataques

ZEINA KARAM
DA ASSOCIATED PRESS, EM ZABADANI (SÍRIA)

Quando chegou com seu marido e sua filha de 10 anos para ver como estava a casa da família, após uma ausência de cinco anos, Adibeh Ghosn teve dificuldade em reconhecer o bairro.

Ela percorreu pilhas de entulho para chegar à sua casa, mal acreditando no que estava vendo. "Cadê os vizinhos, cadê as pessoas? O que aconteceu aqui?", perguntou às lágrimas, olhando o horizonte de prédios derrubados, casas com portas e janelas arrancadas e, finalmente, sua própria casa carbonizada.

Zabadani, subúrbio de Damasco que no passado era famoso por suas árvores frutíferas e atraía turistas de países árabes ricos do Golfo, hoje apresenta uma paisagem interminável e deserta de construções reduzidas a escombros, depois de milhares de rebeldes terem sido expulsos juntamente com os moradores originais da cidade.

A pouca distância dali fica Madaya, antes um reduto rebelde cercado pelas forças do governo. A cidade chegou às manchetes internacionais com fotos dolorosas de crianças morrendo de desnutrição. Como Zabadani, ela agora foi retomada pelas tropas sírias.

Esta semana a Associated Press entrou nas cidades gêmeas e testemunhou em primeira mão a escala enorme da catástrofe humana resultante de cinco anos de cerco e bombardeio implacáveis.

"Nossa cidade era um paraíso. Vivíamos felizes. Por que isso aconteceu conosco?", perguntou Ghosn.

Zabadani, situada 45 quilômetros a noroeste de Damasco, foi retomada no mês passado por forças aliadas sírias e apoiadas pelo Irã, depois de ter passado dois anos sob cerco. Ela é a mais recente de uma lista crescente de cidades maiores e menores recapturadas pelas forças do ditador Bashar al-Assad.

Os avanços militares colocaram o líder sírio em posição de superioridade na guerra, que já dura seis anos, criando uma nova realidade em campo, ao mesmo tempo em que rodadas infrutíferas de negociações para um cessar-fogo acontecem na Suíça e no Cazaquistão entre os lados em guerra.

A cidade de maioria sunita, situada perto da fronteira do Líbano, voltou ao controle do governo em 19 de abril, depois de ser fechado um acordo mediado pelo Qatar e o Irã.

Pelos termos do acordo, milhares de rebeldes e os moradores remanescentes de Zabadani e Madaya foram levados das duas cidades para a província de Idlib, situada no norte do país e sob controle rebelde, em troca de sua rendição. O acordo foi vinculado ao destino de milhares de moradores xiitas de duas cidades cercadas pelos rebeldes em Idlib, que foram transferidos para o território controlado pelo governo.

Foi uma das maiores e mais controversas transferências de populações na guerra civil síria, destacando o papel crescente exercido pelo Irã na Síria, além das suspeitas de que a grande potência regional xiita estaria praticando engenharia demográfica e sectária em partes da Síria que são importantes para seus próprios interesses.

Percorrendo de carro as planícies férteis que levam a Zabadani e Madaya, com cerejeiras perfumadas e pomares de macieiras em flor se estendendo dos dois lados da estrada, era difícil imaginar que até recentemente havia pessoas morrendo de fome e desnutrição na região.

Moradores disseram à AP que 50 pessoas morreram de desnutrição em Madaya, cuja população cresceu para 40 mil habitantes, já que muitas das pessoas que fugiram de Zabadani se fixaram ali.

Zabadani foi a primeira cidade da zona rural próxima a Damasco a cair nas mãos dos rebeldes sírios, no início de 2012, e é uma das que sofreu mais destruição.

A cidade foi retomada brevemente por forças do governo um mês mais tarde e então reconquistada pelos rebeldes. Durante meses, ataques aéreos e bombas de barril choveram sobre a cidade apertada entre montanhas verde-azuladas.

No verão de 2015 Zabadani foi totalmente cercada, quando o Exército sírio bloqueou a rodovia de Damasco e combatentes aliados do Hizbullah a cercaram pelo lado libanês.

Agora, abrindo caminho entre os montes de lixo espalhados pelo que tinha sido sua casa, Ghosn encontrou algumas lembranças de família que lhe arrancaram mais lágrimas: uma foto de seu filho, que está estudando arquitetura. O certificado escolar de sua filha. Uma toalha de mesa feita de crochê por sua mãe. A moldura quebrada de sua foto de casamento; a foto propriamente dito havia sumido.

"Quem é esse, Mamãe?", perguntou sua filha menor, Samar, tirando uma foto empoeirada do meio do entulho.

"É o seu pai quando jovem", respondeu Ghosn, arrancando gargalhadas de sua filha.

Samar tinha apenas 3 anos quando a guerra começou, em março de 2011, pequena demais para ainda se lembrar do sofrimento que a família suportou antes de fugir de Zabadani, no início de 2013, em meio a combates pesados. Eles passaram um ano na cidade vizinha de Bloudan e depois foi para Jaramana, distrito na periferia de Damasco. Samar não se lembrava da casa.

"Eu queria não ter vindo para ver isto daqui. Estou com dor no coração", murmurou Ghosn.

A impressão era que a cidade fora destruída por um terremoto, com fileiras seguidas de edifícios bombardeados, com os andares superiores caídos e as fachadas de lojas destruídas. Pedaços de metal, pedras e estilhaços de vidro se espalhavam pelas ruas.

Um silêncio estranho era rompido apenas por ocasionais pios de aves ou o som de vidro sendo esmigalhado pelos pés de alguém que se aproximava. Uma escavadeira do poder público estava em ação numa praça, tentando retirar o entulho.

Mesmo as plantações tinham desaparecido; só restavam os troncos das árvores frutíferas que antes se espalhavam por toda parte na periferia da cidade. Ativistas da oposição disseram que os milicianos pró-governo cortaram as folhas das árvores, numa tentativa de apertar o cerco.

Numa rua acidentada, Hani Mikhail Ghorz e seu irmão mais velho retiravam entulho de sua casa. A casa tinha sido bombardeada. A mobília foi roubada, e até as portas tinham sido arrancadas.

Insígnias xiitas rabiscadas nos muros indicavam que combatentes do Hezbollah tinham ficado ali em algum momento.

"Apesar de como está a casa, estou feliz por estar aqui. Me sinto em paz. Morei em cinco lugares nos últimos sete anos e em momento algum me senti em casa", disse Ghorz, de 36 anos.

Estima-se que 80% de Zabadani esteja destruída; será preciso um esforço enorme para reconstruir a cidade. Centenas de construções parecem estar estruturalmente abaladas e impróprias para serem habitadas. Não há fornecimento de água ou eletricidade.

Durante a visita da AP, apenas algumas poucas pessoas foram vistas voltando à cidade para ver como estavam suas casas. Eram, na maioria, cristãos, que antes da guerra formavam 20% dos 20 mil habitantes.

Crédito: Ammar Safarjalani/Xinhua Homens assam pão em Madaya, cidade que sofreu com a fome devido ao cerco do regime sírio
Homens assam pão em Madaya, cidade que sofreu com a fome devido ao cerco do regime sírio

Comparada com Zabadani, Madaya, a cinco quilômetros de distância, está relativamente intacta. Mas a falta de alimentos foi muito pior na cidade. Um morador apontou para um carro estacionado e contou que seu dono o trocou por cinco quilos de arroz. Os habitantes cortaram suas camas, armários e até os tetos de suas casas e usaram a madeira como lenha, para se aquecerem.

Darwish Youssef, 64 anos, contou que sua família passou seis meses "sem saber o que era pão". Apontando para seu neto Bassel, disse que o garoto só sobreviveu por milagre.

"Esse menino tinha cinco meses de idade e não encontrávamos leite para ele", disse Youssef, contando que sobreviveu durante meses com farinha de milho fervida em água e uma xícara pequena de arroz por dia.

De volta a Zabadani, numa rua destruída do bairro velho da cidade, dois homens de meia-idade estavam sentados em poltronas dilapidadas diante de lojas demolidas. O vento soprava pó em sua direção. Um deles segurava um livro de capa branca. "É o álbum de família", ele disse, folheando as páginas. "Veja, minha mulher com minha filha quando era bebê."

Os dois abandonaram suas casas e lojas há muito tempo, mas na última semana voltaram a Zabadani todos os dias, apenas porque agora podiam fazê-lo.

"Agora vivemos com nossas recordações", disse um deles. "É só o que nos restou."

Tradução de CLARA ALLAIN.

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