Show de Madonna no Rio espelha Nova York como o purgatório de beleza e caos

Estrangulada por milícias, a Hollywood brasileira lembra a violência dos primórdios da artista na metrópole americana

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Fotografia de Steven Klein para ensaio com Madonna na V Magazine

Fotografia de Steven Klein para ensaio com Madonna na V Magazine Reprodução

São Paulo

Madonna estava em chamas. Era verão em Nova York, noite do seu aniversário de 25 anos, quando ela subiu no palco da boate Fun House, famosa naquele início de década de 1980 pela cabine do DJ que ficava dentro da enorme boca de um palhaço, para gritar os versos de "Burning Up", um de seus primeiros sucessos, faixa de seu disco inaugural, "Madonna".

Na canção, agora na setlist do megashow da artista na praia de Copacabana neste fim de semana, no Rio de Janeiro, ela descreve seu corpo consumido pela brasa do amor, ou tesão mesmo, mas lamenta que o alvo de sua paixão nem sabe que ela existe. Os versos então deixam claro que, sim, ela está ali de corpo presente, com um batidão dentro do peito que não vai parar nunca.

Não parou. Madonna, depois de quatro décadas de estrada, ainda surpreende e incendeia palcos. Mas algo ficou para trás, uma chama que se apagou na maior metrópole americana. A Nova York do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o universo que moldou a rainha do pop, não existe mais.

A cantora Madonna
A cantora Madonna - Instagram/Reprodução

E isso é desastroso para artistas de agora, que só podem sonhar com a sensação eletrizante de uma cidade idem, um lugar que então se reconstruía sobre os alicerces plantados por gente como Madonna. Eram loucos, delirantes, mentes e corpos que não cabiam em rótulos, malucos expansivos que chacoalharam a rígida geografia ortogonal das ruas esquadrinhadas a régua de Manhattan.

No endereço do Chelsea onde antes ficava a Fun House, hoje existe uma galeria de arte, a Paula Cooper. Todo o bairro, aliás, deixou de ser a paisagem cinzenta atravessada por ramais ferroviários que terminavam na zona dos abatedouros, açougues e curtumes, o Meatpacking District, para se transformar no epicentro do mercado de arte global.

Todas as casas mais poderosas do mundo ocupam esse pedaço no oeste da ilha e, mais ao sul, está o imponente Whitney, um dos maiores museus nova-iorquinos, rodeado agora de butiques reluzentes, algumas das lojas mais caras do planeta.

Tudo está muito longe da fuligem do underground. É o avesso daquela decadência libidinosa e grudenta que costuma ser o caldo de onde nascem verdadeiros artistas.

Mesmo o East Village, onde Madonna aportou vinda do interior do estado de Michigan e fez sua primeira morada oficial em Nova York, hoje é um reduto bem comportado de estudantes, a maioria herdeiros bem-nascidos, que estudam coisas criativas na Universidade de Nova York, e velhos boêmios que se contentam com uma boêmia refreada de agora, festas com hora marcada para acabar, bares e restaurantes com preços estratosféricos nos cardápios.

Isso em nada lembra os relatos de uma Madonna que desbravava o bas-fond literal de Nova York quando recém-chegada, trabalhando no Dunkin’ Donuts ou servindo drinques atrás do balcão do Lucky Star, e revirando lixeiras à caça de restos de fast food, dormindo entre ratos e baratas. O cenário, segundo conta o irmão da artista em sua recém-lançada biografia, "Uma Vida Rebelde", lembrava aquele do filme "Blade Runner".

Um clássico do cinema, a distopia de Ridley Scott mostra uma metrópole soturna, em que não para de chover, carros flutuam letárgicos entre arranha-céus de vidro, ciborgues vivem entre gente de carne e osso e painéis luminosos anunciam lindas bobagens, um eterno glitch, ou falha do sistema, que era na verdade a ordem vigente.

O estado normal das coisas era o caos envolto em vapor barato, espelho da Nova York que era o oposto polar do subúrbio limpinho, de casas com jardim na frente e atrás, cachorrinhos brincando em volta dos carrões na garagem.

Não é raro ouvir de amigos americanos que a São Paulo e o Rio de Janeiro de hoje lembram aquela Nova York suja, um laboratório de experimentos artísticos. No purgatório da beleza e do caos, onde os palacetes dos ricos no asfalto roçam o morro dos desvalidos na orla mais cintilante do planeta, onde a bossa nova de outrora deságua no funk de hoje, ainda resiste uma certa fricção que impulsiona uma cena cultural vibrante.

Madonna termina sua turnê de celebração da carreira, o maior show de sua vida, bem longe da cidade onde se formou artista. Há algo de simbólico nessa busca pela apoteose na capital do sangue quente, do melhor e do pior do Brasil.

Dizem os funcionários do Copacabana Palace que a diva anda nervosa com o calor da cidade, mas não seriam as altas temperaturas também uma lembrança daqueles primórdios fervidos? O que quer dizer dar adeus a uma turnê desse porte na cidade tomada por milícias e ao mesmo tempo a Hollywood brasileira?

É como se um ciclo se fechasse, daquela Nova York esquálida a um Rio de Janeiro de luxo exuberante só nas bordas, para poucos, a cidade que vê surgir na favela os seus maiores talentos, logo na crista da onda da indústria. Anitta, a "self-made-woman" de Honório Gurgel, não por acaso deve dividir o palco com a americana.

Nesse curto-circuito temporal, vale lembrar que o coração luminoso e comercial da velha Manhattan de Madonna, aliás, onde hoje subcelebridades e semifamosos pagam punhados de dólares para estampar por segundos algum painel publicitário com seus selfies, era o fervilhante epicentro da prostituição de garotos e garotas de programa e do tráfico de drogas da ilha quando Madonna lá chegou. Times Square, segundo a revista Rolling Stone, era o lugar mais desprezível dos Estados Unidos.

Não penso que à época isso fosse um consenso. Madonna viveu na mesma Nova York de Andy Warhol, de Keith Haring, de Jean-Michel Basquiat, com quem namorou, dos últimos beatniks ainda liderados por Allen Ginsberg e William Burroughs, dos minimalistas que dominavam o então industrial bairro do Soho, dos primórdios dos B-52s, de Blondie e dos Talking Heads, de Tribeca antes de Robert De Niro e Jennifer Lopez, a mesma Nova York do Studio 54, a pista de dança dos endinheirados e celebridades para valer, mas também dos inferninhos que ela frequentava e de onde se projetou para o mundo.

Estou falando de lugares como a Fun House, a Paradise Garage, a Danceteria e a Roxy. Se boates tivessem lápides, nos fariam suspirar de tristeza, tão curto o intervalo entre nascimento e morte. Mas o estilo de vida acelerado, a ausência de um futuro em favor de um presente em ebulição, era a tônica desses lugares, os buracos da noite onde Madonna poderia esbarrar em RuPaul, Vivienne Westwood, Grace Jones e afins.

São também os lugares que estruturam clássicos de seu repertório. "Vogue", talvez o maior hino de sua discografia, não existiria sem a cena "ballroom" do Harlem, bairro então dos negros e dos latinos que foi um universo riquíssimo para ela, dos passos de dança à energia feérica da noite.

Mesmo décadas depois, Madonna celebraria o mesmo lugar no clássico álbum "Bedtime Stories" —o clipe de "Secret", em que a cantora veste um casaco de pele e tem o pescoço cheio de correntes de ouro, é uma ode a essa vibe ancestral da cidade que já foi o motor estético do mundo.

Um momento importante na biografia da artista, aliás, aconteceu na pista da finada Danceteria. Quando Madonna já estava no elenco de "Procura-se Susan Desesperadamente", por um desses acasos felizes de uma época que permitia acasos felizes distante da esterilidade das redes sociais, foi ali que rodaram uma cena de boate no filme.

A trilha sonora estava no bolso da cantora, a fita cassete com "Into the Groove", que acabou entrando para a trilha oficial do longa —essa é outra das canções clássicas que a diva deve cantar para 1,5 milhão de pessoas agora nas areias de Copacabana.

Há, no entanto, uma ausência notável, sinal dos tempos talvez. No fervo de quatro décadas atrás, Madonna compôs "I Love New York", um lado B gravado muito tempo depois, neste milênio, que vez ou outra invade uma setlist da cantora. É uma declaração de amor àquela Nova York de então, hoje sepultada pelo poder avassalador do dinheiro, de oligarcas e suas "penthouses", uma cidade vítima do próprio fetiche, tão sexy que se tornou mumificada, playground de super-ricos inacessível para os mortais que são os artistas no início de tudo.

Nos versos, Madonna diz não gostar de cidades, a não ser Nova York. Los Angeles é para quem morre de sono, Londres e Paris não importam. Se você não aguenta o calor, ou o tranco mesmo, melhor cair fora. Seu coração só tem lugar para Nova York.

Madonna, que sobe ao palco no Rio de Janeiro numa onda de calor recorde para nosso outono tórrido, hoje mora no Upper East Side nova-iorquino, um bairro tão chique quanto chato. Ela está em outra, mas é certo de que se lembra do começo de tudo, o que talvez faça o distrito das madames e dos poodles ser também a sua casa, o lugar da dona da porra toda.

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